Reflexões sobre a música e música sobre as reflexões
Autor de “Música Só” examina diferentes vertentes musicais através da filosofia, questionando a análise crítica dividida entre música erudita e popular
Em Edusp
Por Divulgação
As composições de Richard Wagner, as análises musicais de Friedrich Nietzsche e Theodor Adorno, a música de Belém do Pará e a era do streaming: esses são apenas alguns dos assuntos que Henry Burnett explora nos variados textos que compõem seu livro “Música Só: Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasil”.
Constituído por uma miríade de artigos produzidos ao longo da vida do autor, “Música Só” traz textos divididos em duas categorias mais abrangentes: “música séria” e “música ligeira”, conceitos que, com uma dose de ironia, remontam à obra de Adorno. No entanto, a intenção não é reforçar essa divisão entre música erudita e popular, e sim questioná-la.
Por um lado, Burnett destaca que a música do final do século XIX na Europa ainda hoje exerce grande influência sobre gêneros musicais e aspectos estéticos e políticos; por outro, argumenta que a música popular é igualmente essencial para refletir sobre identidades nacionais, culturais e estéticas.
Em “Música Só”, Henry Burnett oferece análises e reflexões que não são somente sobre a música, tampouco apenas sobre a filosofia. Seus textos representam a junção indissociável desses dois temas, ambos objetos de paixão e interesse intenso do autor ao longo de sua carreira como músico e acadêmico.
Como surgiu a ideia de produzir um livro unindo textos escritos ao longo de sua carreira?
Henry Burnett: A ideia partiu do Alex Calheiros, que escreveu o posfácio do livro. Na época, quando ainda estava na Universidade de Brasília (UnB), ele trabalhava como diretor de difusão cultural e o livro sairia por um selo recém-criado pela Casa de Cultura da América Latina, chamado Caliban. Por motivos alheios à sua vontade, o projeto acabou não avançando. Com o livro em mãos, resolvi trabalhar pela sua edição e o enviei para a Edusp, que o aprovou e produziu essa edição impecável.
Como foi o processo de selecionar os textos para o livro?
HB: Os textos mais antigos datam de quase vinte anos, quando foram publicados na extinta revista Trópico: Ideias de Norte a Sul, então editada por Alcino Leite Neto. Outros foram publicados recentemente em revistas acadêmicas, outros ainda escritos especialmente para o site A Terra é Redonda e para o projeto Pandemia Crítica (Edições Sesc/n-1 edições) e os restantes são de fontes diversas, como o ensaio sobre Arnaldo Antunes encomendado pela Associação Cultural Videobrasil. Importante mencionar que grande parte desses textos estaria perdida não fosse sua publicação em livro, o que, pelo menos para mim, reforça a importância desse formato. O critério de seleção foi autocrítico: lia e selecionava os que me pareciam adequados para a edição. A música era o mote principal, excetuando os excursos, que dialogam com o conjunto, mas são independentes; é o caso do texto sobre Antonio Candido, “‘O Portador’ ou um Esclarecimento Sem Limites”, que elabora uma defesa contra a apropriação nazista da obra de Nietzsche, da resenha “Sobre o Livro ‘O Tropo Tropicalista’, de João Camillo Penna”, o melhor comentário que conheço sobre a resenha de Roberto Schwarz para o livro “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso, e de “Filosofia como Paixão e Tarefa”, uma aula magna que apresentei na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Na nota explicativa do livro, você diz que “os [textos] que ficaram de fora não passaram pela prova do tempo”. Em que sentido eles não passaram pela prova do tempo?
HB: Isso se aplica sobretudo aos textos que podem ser classificados como “crítica musical”, com as aspas da prudência, aqueles que dediquei a álbuns, canções, compositores; houve até uma tentativa de crítica de cinema. Já na primeira releitura ficou claro que algumas críticas tinham envelhecido mal, enquanto outras mantinham atualidade; no caso destas, foi preciso apenas atualizar pontualmente alguns dados, sem alterar substancialmente o conteúdo. Como determinados gêneros musicais, a crítica também pode morrer.
O convite a Jorge de Almeida para escrever o prefácio do livro partiu de você ou a escolha se deu de outra forma?
HB: Jorge de Almeida é para mim uma referência na área de filosofia da música, com a qual o livro dialoga de diversas maneiras, inclusive crítica. Foi o primeiro nome que me ocorreu; a leitura do prefácio mostra o entendimento amplo que ele tem sobre a matéria. Além dele, Oswaldo Giacoia, Celso Favaretto e Alex Calheiros foram nomes obrigatórios para a orelha, a quarta capa e o posfácio, respectivamente. Os dois primeiros acompanharam, na origem, a elaboração de diversos textos selecionados para o livro, ou na condição de orientador, ou de supervisor, ou como leitores críticos. São pessoas fundamentais em minha formação e em tudo que faço até hoje.
Você explica que as subdivisões do livro intituladas “Música Séria” e “Música Ligeira” são uma ironia. Qual a sua opinião sobre “dividir” a música nessas duas categorias?
HB: Essa divisão não é nova, e não seria exagero dizer que o auge do seu emprego ocorreu na obra de Theodor Adorno. O livro, a seu modo, mantém a divisão para o enquadramento dos textos de acordo com a música de fundo, digamos; sobre as questões alemãs em torno de Wagner, os textos aparecem na seção “Música Séria”, bem como o texto de “transição” sobre Villa-Lobos e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), que faz uma ponte para a seção “Música Ligeira”, onde incluí a maioria dos textos. O leitor vai perceber que Nietzsche também aparece nessa parte, propositalmente, porque o livro é justamente uma tentativa de superar essa divisão, de misturar essas categorias com rigor. Não se trata de abolir características de estilo ou gênero musical, ou de equipará-los formalmente; antes, a ideia é tentar mostrar que o material musical popular – sobretudo o brasileiro, nesse caso – é tratado do ponto de vista crítico de igual para igual com a chamada música erudita, representada no livro, principalmente, por Richard Wagner e seus dois grandes críticos. Acredito que uma das formas mais sensatas de analisar os problemas brasileiros é refletir sobre sua música, sem hierarquias e levando em consideração não apenas o passado, mas também o presente. Se a música alemã foi central para Nietzsche e Adorno pensarem a Alemanha, seria um equívoco da filosofia brasileira, em especial das pesquisas na área de estética, ignorar o material musical produzido entre nós. Sobre a ironia, na dúvida, achei melhor deixar isso claro desde a abertura, para indicar que essas separações estanques não fazem sentido para o que faço.
Por que você optou por incluir vários textos sobre Wagner, Nietzsche e Adorno no livro?
HB: Essa tríade ocupa meus interesses acadêmicos há muito tempo, desde o trabalho de conclusão de curso da graduação até minhas pesquisas em nível de pós-doutorado e além. Wagner é o compositor mais importante da virada do século XIX para o XX. Quando Nietzsche afirmou que através de Wagner a modernidade falava sua linguagem mais íntima, talvez não tivesse a exata medida do que isso significava, mas hoje sabemos. Quando lemos isso mais de um século depois, é surpreendente constatar que a crítica de Nietzsche sobre a obra de Wagner e sua figura pública tornou-se uma espécie de visão antecipada da influência do compositor sobre as artes no século XX. Eu poderia dar diversos exemplos, mas creio que o trabalho do crítico musical da The New Yorker, Alex Ross, é o que temos hoje de mais amplo nesse aspecto. Seu monumental livro “Wagnerism: Art and Politics in the Shadow of Music” (Picador Farrar, Straus and Giroux, 2021, ainda sem tradução para o português) aponta muitos caminhos que confirmam a visão antecipatória da crítica de Nietzsche, cujo nome aparece mais de uma centena de vezes em seu trabalho e em seus livros anteriores, como “O Resto é Ruído: Escutando o Século XX” (Companhia das Letras, 2009). Não faz muito tempo que Ross publicou um texto na famosa revista, agora centenária, o qual eu traduzi para o site A Terra é Redonda quando estava dando um curso sobre a “IV Consideração Extemporânea, Richard Wagner em Bayreuth”; deve sair em breve. Ross mostra, confirmando Nietzsche, que a obra de Wagner tem uma influência muito ampla, que muitas vezes o ouvinte ou o espectador sequer têm ideia dessa conexão e que sua tecnologia cênica e sua busca por efeitos foram incorporadas de maneira ostensiva na produção musical do século XX. Adorno entra de maneira especial nesse contexto, quase como um antídoto contra nossa visão muitas vezes parcimoniosa da crítica de Nietzsche. Para Adorno, Nietzsche acertou ao criticar as relações de Wagner com o Estado e ao perceber as intenções mendazes da sua busca por efeitos sobre a plateia, mas errou ao não avaliar a importância dos avanços formais que Wagner desenvolveu na linguagem musical.
Como surgiu o seu interesse nas variadas manifestações musicais que você analisa nos textos da segunda parte do livro, “Música Ligeira”?
HB: Diria que a origem mais antiga dos meus interesses gerais sobre a música popular está ligada com minha própria relação de criação com ela. Comecei a compor com 13 anos, de maneira diletante, e meus estudos musicais nunca seguiram em frente nem tiveram a capacidade de definir os progressos que eventualmente fiz como compositor; parece que tudo que compus não passou por um ordenamento, que tudo foi se desenvolvendo intuitivamente no gesto cotidiano de tocar, ler e escrever. Alguns anos depois, quando a filosofia entrou na minha vida, também de maneira imprevista, tentei desde os primeiros esboços de trabalhos acadêmicos aproximar essas duas formas de criação, a composição e a pesquisa. Creio que vem daí esse interesse por manifestações diversas que têm a música como princípio. Ao tentar desenvolver formas de crítica próximas da crítica estética, ou irmanadas em rigor com ela, sentia poder me colocar naqueles lugares onde a expressão musical determinava tudo ao redor. A crítica de variadas expressões da música está ligada a esse movimento de colocar-se dentro das formas musicais populares e comerciais na condição de compositor, algo que admito achar estranho; mas é o que julgo determinar meus interesses na segunda parte do livro, ou pelo menos é um princípio que me permitia ir mais longe nas análises, com a segurança de quem entendia, ou achava entender, como a música popular se estruturou como uma das formas mais íntegras de expressão do país.
Como foi a escolha dos artigos na seção “Excursos”? Você tinha mais textos que poderiam se encaixar nessa categoria e fez uma seleção de apenas três?
HB: Havia outros textos que poderiam estar nessa seção, mas isso causaria um desequilíbrio na intenção principal do livro. O texto sobre Antonio Candido foi um presente do acaso, pois ele nasceu de uma visita ao seu apartamento em São Paulo. Uma colega do curso de história da Unifesp, Ana Nemi, o entrevistaria para uma publicação sobre a história da nossa universidade e me convidou para acompanhá-la. Minha intenção ao aceitar era única e a oportunidade imperdível, porque até onde sabia ninguém tinha perguntado diretamente a ele sobre as motivações para escrever o texto sobre Nietzsche, “O Portador”. Num momento, quando a entrevista estava terminando, sem nenhum preparo nem questão elaborada, perguntei diretamente sobre o texto. Foi então que Candido iniciou um longo monólogo, quase sem intervenções minhas. Foi sobre seu depoimento que construí o texto publicado. Salvo engano, é o único depoimento dele sobre esse texto tão importante para quem lê e estuda Nietzsche no Brasil; foi para todos os meus colegas nietzschianos que incluí o texto fruto daquela conversa. A resenha de “O Tropo Tropicalista”, de João Camillo Penna, está ligada mais diretamente à música, pois o impacto da leitura do seu livro sobre mim foi imediato. Reitero que, de tudo que li sobre a resenha de Roberto Schwarz sobre o livro “Verdade Tropical”, é o texto que elabora a resposta mais contundente. Tinha certeza de que a resenha merecia estar no livro, para fomentar nos leitores a vontade de ler a obra de Camillo Penna. Por fim, “Filosofia como Paixão e Tarefa”, uma aula magna que apresentei na Unifesp em 2019, no início do ano letivo do curso de filosofia. No fundo, um texto-homenagem ao professor Benedito Nunes, meu conterrâneo.
Você menciona que “a filosofia nunca lançou questões à música, foi sempre o contrário”. Isso é um comentário sobre a sua relação pessoal com a música e a filosofia ou uma percepção mais abrangente?
HB: Lendo assim isolada parece uma frase de efeito, por isso é bom poder detalhar. Não é por acaso que a frase aparece na minha “Nota Explicativa”, um texto bem pessoal. Para mim, como compositor, a filosofia nunca foi uma fonte; se ela em algum momento atravessa algumas letras, é por empréstimo espontâneo, jamais com a intenção de destilar jargões filosóficos em canções, o que, de resto, não seria estranho. Existem centenas de canções brasileiras que podem ser lidas como pequenas reflexões filosóficas, como tento mostrar no ensaio “Canções em Busca do Absoluto”. Dito isso, confesso que sempre me causou estranheza que a área de filosofia da música no Brasil dedicasse tão pouco espaço ao material musical popular, como se se tratasse de um objeto menor, no limite incapaz de levar à reflexão estética, com raras exceções. Não gostaria de julgar as opções dos meus colegas. Fiz meu caminho um tanto solitário, é verdade, mas dialogando em algumas ocasiões, direta ou indiretamente, com Rodrigo Duarte, Celso Favaretto, Yara Caznok, Lorenzo Mammì, Vladimir Safatle e José Miguel Wisnik, entre outros. Se algo desse curso puder servir aos jovens pesquisadores ou interessados na música do Brasil, terá valido a pena. Por fim, julgo importante indicar que “Música Só: Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasil” reconstrói um longo caminho, cujo ponto mais alto, na minha opinião, é minha tese de livre-docência, “Espelho Musical do Mundo” (Phi, 2021).
Como você definiria a sua “música da filosofia”, que você cita como contraponto à noção mais tradicional de filosofia da música?
HB: A filosofia da música é uma área consolidada, com colaborações importantes que não podem ser descartadas; o livro também se serve de algumas delas em muitos momentos. Minha “música da filosofia” nada mais é do que uma ambição talvez desmedida de fazer com que a filosofia (da música) brasileira – se é que isso existe ou pode um dia vir a existir – possa se deixar espelhar na musicalidade dentro da qual ela mesma se instaura, muitas vezes, infelizmente, por contraste. Não que isso seja inédito, Nietzsche fez a filosofia soar com seu pensamento musical. Queria o mesmo para o pensamento filosófico-estético brasileiro sobre música.
Entre os artigos que você já escreveu, a maior parte foi produzida para publicações específicas ou por interesses artísticos e/ou filosóficos que você teve?
HB: Para o bem e para o mal, sou um acadêmico de uma universidade pública do Brasil. Para o bem porque tento levar tudo isso para a sala de aula, mostrando aos alunos que a música popular pode ser objeto de análise crítica dentro dos chamados “grandes temas”, algo que eles, é bom que se diga, muitas vezes já sabem, embora temam ainda hoje repreensões como as que sofri desde a graduação ao tentar aproximar a filosofia da música do universo popular urbano brasileiro. Para o mal porque muitas vezes precisei trabalhar em dobro. Explico: muitas perspectivas que o livro traz foram apresentadas em forma de projetos de pesquisa às agências de fomento; na maioria absoluta dos casos, na avaliação por pares, foram rejeitados, muitas vezes com a célebre acusação de “não ser filosofia”. Por isso foi preciso, não raro, alimentar o sistema, digamos assim, com textos considerados “sérios” – entenda-se: dedicados a filósofos e seus temas clássicos. Enquanto isso, seguia escrevendo o que considerava minha melhor contribuição: essas reflexões sobre a música do Brasil. No final da “Nota Explicativa” faço uma pequena brincadeira com isso. Gostaria de registrar que devo a Plinio Martins Filho, editor da Edusp, a sugestão para o subtítulo, “Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasil”. A clareza que o livro ganhou até mesmo para mim deve-se a essa certeira sugestão. Foi ele que me ajudou a entender que essa travessia na verdade era de mão dupla, que estudar problemas alemães e europeus em geral foi fundamental para elaborar minhas reflexões sobre a cultura musical do nosso país. Foi a primeira vez que publiquei um livro e entendi o papel decisivo de um editor.
Alguma das reflexões que você fez em seus textos serviu de inspiração para suas composições musicais?
HB: Nunca fiz essa autocrítica. Na verdade, a composição e as reflexões acadêmicas se complementam, mas a intuição autoral sempre está em primeiro plano. Não é por acaso que o leitor não encontrará uma metodologia de análise em nenhum texto. Escrevo da mesma forma que componho, um acorde ou uma frase disparam uma linha melódica ou um ensaio, cujo final é absolutamente insondável. Sei como começar, mas nunca como acabar.