Perturbadora e lisérgica, a multifacetada Clarice Lispector pede por uma biografia plural

A complexa tarefa de biografar uma mulher que negava a “grafia” e desejava ser puramente “bio”

Em Edusp

Por Divulgação

Na década de 1960, Nádia Gotlib fazia parte da turma inaugural do curso de Estudos Brasileiros da Universidade de Brasília quando um de seus professores a presenteou com o livro que mudaria o rumo de sua carreira: “Laços de Família”, de Clarice Lispector.

A escrita particular e misteriosa de Clarice instigou Gotlib, que iniciou sua atividade profissional relacionada com a escritora já no fim da década de 1970. Em sua estante, exibe com orgulho uma cópia do primeiro livro publicado pela autora, “Perto do Coração Selvagem”, um presente de Antonio Candido, com dedicatória da própria Clarice Lispector.

A cada trabalho sobre a vida da autora surgia o impulso de começar um novo projeto, e hoje Nádia Gotlib é referência nos estudos sobre Clarice Lispector. Entre suas inúmeras obras, “Clarice: Uma Vida que se Conta” (Edusp), “Clarice Fotobiografia” (Edusp) e, a mais recente, “Clarice na Memória de Outros” (Autêntica) conseguem abordar a vida da escritora segundo diversos aspectos, exemplificando as muitas formas como uma história pode ser contada.

Além dos vários artigos e livros publicados, Nádia foi consultora do recente filme “A Paixão segundo G.H.”, dirigido por Luiz Fernando Carvalho, que busca transportar para as telas um dos romances mais complexos de Clarice.

O que instigou seu interesse em Clarice Lispector e a motivou a começar seu trabalho como biógrafa? Não existia muito material biográfico sobre Clarice antes da sua contribuição.

NG: Enquanto lia Machado de Assis durante o curso de Estudos Brasileiros que fiz na Universidade de Brasília, ganhei de presente de um professor o livro de contos “Laços de Família”. Fiquei muito instigada com esses contos porque eles eram muito diferentes do que eu estava lendo. Havia momentos em que o texto tocava o leitor – no caso, a leitora –, mas não de uma maneira que poderia ser explicitada. Então comecei a ler os outros textos dela, e depois fui trabalhar na Universidade de São Paulo. Comecei a fazer o curso de pós em 1969 e logo em seguida já passei a dar aulas. A minha atividade profissional com a Clarice data do fim da década de 1970, começo da década de 1980. Na época não havia uma biografia nos termos tradicionais: nasceu, foi para a escola, aquela coisa da linha histórica. Havia textos muito importantes, incluindo entrevistas que a Clarice concedeu, como uma do Renard Perez. Então havia entrevistas que ela concedeu ao longo do tempo, sobretudo nos anos 1950, 1960, 1970, que são as três décadas em que há mais entrevistas. E havia também textos como o da Olga Borelli, que secretariou a Clarice depois do incêndio que afetou a sua mão e escreveu um livro quatro anos após a sua morte. Foi a primeira vez que se abriu uma cortina para a intimidade da Clarice escritora. E no final ainda havia uma seleção de trechos de cartas da Clarice para as irmãs. Esse livro foi muito importante e infelizmente até agora não pôde ser reeditado porque há problemas de direitos autorais. Mas foi quando eu estava escrevendo sobre a literatura da Clarice – porque a minha intenção era a de examinar a sua obra literária – que senti falta de uma biografia. Tem uma frase muito interessante da Clarice que diz o seguinte: “Não acredito em mim porque meu pensamento é inventado”. E eu constatei que isso é verdade, não é só aquela mentira da ficcionista que envereda pelo imaginário, ela mentia fatos mesmo da vida real. Ela dizia que nasceu em 1925, mas depois a gente viu que seria em 1920. Eu consegui a certidão de nascimento original, tirada lá na Ucrânia. E quando começa a falar muito de biografia, ela escorrega. Como naquela crônica “Esclarecimentos – Explicação de uma Vez por Todas”; quando começa, a gente acredita que ela vai dizer tudo… e não diz. E ela clamava mesmo: “Não vou ser autobiográfica. Quero ser ‘bio’”, tirar a grafia e simplesmente experimentar essa matéria viva pulsando. Ela escreve para chegar a um ponto em que a palavra já diz tudo não dizendo nada. Não precisa mais dela; prefere ficar com a “bio”, com essa experiência vital.

Em “Clarice: Uma Vida que se Conta”, você menciona que a Clarice passava uma imagem muito diferente para diferentes pessoas, e cita exemplos em que ela é analisada por meio de diferentes lentes. Como foi para você produzir biografias e fazer estudos sobre uma pessoa tão múltipla?

NG: É importante respeitar e compreender a multiplicidade de perspectivas que cercam Clarice. Cada leitor, crítico ou biógrafo tem sua própria visão da autora, influenciada por sua bagagem pessoal e interpretação da obra criada por ela. Assim, ao mergulhar na pesquisa sobre Clarice, foi fundamental reconhecer e honrar essa diversidade de opiniões e interpretações. O Hélio Pellegrino, que foi um psicanalista, entendia os mecanismos da mente e era um escritor muito bom, sensível, usava palavras que para mim definem muito bem a Clarice. Ele dizia que ela era perturbadora e lisérgica. Eu acho que esses dois termos são muito próprios, adequados para traduzir a Clarice. Ela era como todo artista é: de certa forma, perdido. Ele também dizia que ela tinha uma capacidade de percepção muito desenvolvida, antenas muito ligadas, em alta voltagem. Então eu concordo que esse é um dos modos de Clarice. No entanto, assim como ela era perturbadora e complexa, também podia ser simples e transparente em sua expressão. Sua comparação de si mesma com Bach, evocando a simplicidade das músicas do compositor, ilustra como ela podia ser acessível e direta em meio à profundidade de suas reflexões. Entretanto, entender Clarice não é tarefa simples. Assim como em uma peça de música de Bach, é necessário mergulhar na linguagem peculiar e muitas vezes enigmática que ela emprega. É preciso estar disposto a se deixar envolver pela atmosfera densa e evocativa de suas palavras, sem a expectativa de compreender tudo de imediato. Como ela mesma sugere, há textos que demandam um envolvimento mais profundo, uma entrega maior por parte do leitor. Enfim, produzir biografias e conduzir estudos sobre uma figura tão complexa e multifacetada como Clarice Lispector é uma experiência fascinante e desafiadora. Clarice era uma pessoa que transcendia rótulos e definições simplistas, o que exige uma abordagem sensível e aberta.

A obra “A Paixão segundo G.H.” parece ser extremamente difícil de adaptar para o audiovisual, dada a sua sutileza, que me parece mais própria para um livro. Você acreditava que seria uma obra adaptável? O que você achava da ideia de um filme sobre o livro?

NG: Quando o Luiz Fernando Carvalho me chamou para conversar sobre o filme, a primeira coisa que eu falei foi: Mas justo “A Paixão segundo G.H.”? É de fato uma obra extremamente desafiadora em termos de transposição para o audiovisual, graças à profundidade e à sutileza características do livro. Eu compartilhava da opinião de que não se tratava simplesmente de fazer uma adaptação, no sentido tradicional do termo. Adaptar implicaria alterar a obra original, inserindo elementos novos ou modificando aspectos fundamentais. O que o Luiz Fernando propôs foi uma “transcriação”, algo mais profundo. Era trazer o próprio livro para a tela, preservando sua essência e atmosfera. Ao longo das conversas e do processo de criação do filme, percebi que o objetivo não era simplificar ou tornar mais acessível a obra de Clarice, mas sim traduzir sua complexidade para outro meio artístico. O filme de Luiz Fernando Carvalho não é convencional, assim como o romance de Clarice não o é. Ambos desafiam as convenções narrativas e estéticas, mergulhando nas profundezas da experiência humana. A qualidade estética e imagética do romance, com sua riqueza visual, foi bem capturada em sua transcriação para o cinema. O filme é um desfile de imagens poderosas, que alternam o maravilhoso com o desconcertante, refletindo a dualidade da condição humana. As pessoas saíam das projeções meio estupefatas, meio embasbacadas. Tanto que, nas conversas que a gente teve depois das sessões, era muito difícil entabular o diálogo, porque o filme é muito impactante. E, depois de um impacto como esse, é necessário o silêncio.

Como foi o processo das oficinas teóricas para a produção do filme e qual foi o seu envolvimento com a criação da obra cinematográfica?

NG: Na primeira vez em que eu encontrei o Luiz Fernando Carvalho, ele me deu a notícia de que estava filmando e me disse que gostaria que eu fosse falar com a equipe sobre o livro. Ele convidou várias pessoas, com várias atividades, de vários campos do saber: da psicologia, da psicanálise, da literatura, da antropologia. Assim, o meu envolvimento com a criação do filme se deu a partir do convite do Luiz Fernando para participar dessas oficinas teóricas. Na primeira vez em que estive lá, havia sido convidada para falar sobre o livro e compartilhar minhas reflexões. Quando eu cheguei ao galpão, vi bem na frente, bem grande, a assinatura dela, um grande pôster retangular, com a assinatura grande. Tinha também um oratoriozinho e o quartinho da personagem Janair, onde a Maria Fernanda Cândido fazia a preparação dela. E, na parede, o desenho do deserto, do homem, da mulher e do cão – que o Luiz fez e no livro foi feito pela empregada Janair. Eu percebi que o ambiente tinha muito da Clarice, como se ela estivesse ali, sabe? E a equipe era muito grande, porque todo mundo era convocado para assistir às palestras. Então, tinha o pessoal do figurino, da preparação do corpo, a moça do cafezinho, a pessoa que fazia as compras, a do roteiro… Estava todo mundo ali para assistir. E foi muito agradável conversar sobre o filme e sobre o romance. Terminada essa fase, o Luiz Fernando me ligou de novo e perguntou se eu poderia participar de outra etapa, para dar continuidade à primeira. Eu fui, mas sem saber exatamente o que que eu ia fazer. Quando cheguei, era uma mesa só de oito pessoas, um petit comité. E lá estava a Maria Fernanda Cândido. Ele falou: Maria, você pode ler? Então ela começou a ler um artigo que eu tinha publicado em 1995, numa edição do romance “A Paixão segundo G.H.” da editora Francisco Alves, numa época em que resolveram reeditar a obra da Clarice com prefácios de várias pessoas, e eu tinha feito esse. Foi uma surpresa para mim. Depois disso, começamos a ler o romance. Palavra por palavra. Posteriormente, quando o Luiz Fernando estava fazendo a edição em São Paulo, ele me chamava de vez em quando para acompanhar. Até que veio a pré-estreia no Rio e em São Paulo, com os bate-papos de que falamos anteriormente. Senti que o processo de criação do filme foi marcado pela colaboração, pela troca de ideias e pela imersão na obra da Clarice Lispector.

Na fotobiografia, você discorre sobre o porquê de fotobiografar a Clarice, em vez de a deixar só no seu lugar da literatura. Assim, o que você acha que a gente ganha ao não deixar “A Paixão segundo G.H.” restrita à literatura e transportá-la para o cinema?

NG: Acredito que se ganha muita coisa. E sabe qual o maior ganho? Querer voltar para o romance. Porque eu tenho conversado com várias pessoas que assistem ao filme e ficam com vontade de reler o livro. A nova perspectiva sobre a obra original também estimula o espectador a revisitar o romance. Nele, somos nós que construímos as imagens, criando nosso próprio “filminho” mental a partir das palavras de Clarice. No entanto, o filme oferece uma interpretação visual desse universo, com imagens belas e plásticas que enriquecem a experiência narrativa. É como se fosse um filme-romance, que dialoga com a obra literária. Essa interação entre livro e filme cria um diálogo em que cada forma de expressão se complementa e se enriquece mutuamente. A experiência de ir do romance para o filme, e vice-versa, desperta novas camadas de significado e compreensão, revelando aspectos da obra que talvez não tivéssemos percebido anteriormente. Esse diálogo dinâmico entre as duas formas de arte suscita novas reflexões e revelações, enriquecendo ainda mais a experiência de quem se envolve com a obra em suas diferentes manifestações.

Como a fotobiografia complementa a biografia e como a sua nova obra vai complementar as anteriores?

NG: Eu acho que as obras estabelecem uma rede. Existe uma interconexão, porque a biografia é uma narrativa, a narrativa de vida e de obra que traz informação e uma leitura das obras em uma linguagem que não é a linguagem teórica, técnica; eu procurei usar uma linguagem que possa ser apreciada por pessoas que não são especialistas. Então, esse foi meu primeiro objetivo. Já na fotobiografia, o foco foi o material que constitui a linguagem visual. E esse material inclui vários períodos. Tem uma foto dela numa escadaria de Berna, com um corpo diplomático, que mostra elegância com uma pitadinha de estar à vontade, porém mais elegância do que estar à vontade. Certa atitude de contenção, formal, de formalidade. E da Clarice só aparece a cabeça, com o olho puxado, olhando para o céu. Então, na imagem, tem o corpo diplomático em um canto e, lá no fim, só a cabeça completamente fora do esquema. Essa foto revela muito o que a Clarice era naquele momento, vivendo em um contexto que era completamente estranho a ela, à personalidade dela. São detalhes fotográficos que eu acho que falam, revelam. E os olhares: desde criança até aquela foto de sobrecapa que eu escolhi, do Alair Gomes, com aquele olhar fulminante. Olhar que não perdoa. Ela vai direto ao alvo, haja o que houver.

O que você pensa sobre a relação entre o biógrafo e a biografia? Afinal, a visão do biógrafo de certa forma também é projetada em sua pesquisa, a depender do recorte e da abordagem escolhidos. Como você vê a conversa entre o que o biógrafo está pesquisando e o biografado?

NG: Eu acho que essa influência realmente acontece. Eu vou começar explicando pelo livro “Clarice na Memória de Outros”, com textos que eu reuni ao longo dessas décadas todas, desde 1980. E eu usei informações desses textos todos para montar “Clarice: Uma Vida que se Conta” e “Clarice Fotobiografia”. Mas nessa última biografia eu queria depoimentos escritos, e isso é muito diferente exatamente por querer que as vozes se pronunciassem. Então, quando eram depoimentos orais, eu os transcrevia, mas são pouquíssimos. A maioria realmente é de depoimentos escritos. Muitos já tinham sido escritos e estavam perdidos, esquecidos, e não seriam mais publicados. Então, eu os resgatei, como documentos históricos importantes. Eu cheguei até a fazer encomenda de textos, pedi que escrevessem. E sabia o que tinham a dizer, porque eu vinha conversando com essas pessoas há muito tempo; a maioria delas é conhecida antiga. Mas eu pedi que escrevessem, porque, quando você escreve, vai revelando não só a pessoa sobre a qual você escreve, mas também se revela como autor. O seu contexto, a história de como esse texto surgiu, de como esse documento surgiu. São vozes, são 65 depoimentos de pessoas que viram Clarice. A simples seleção de textos e imagens já tem uma visão de autor, de alguém que fez não só a biografia como a fotobiografia. Toda a seleção de procedimentos também revela você, o autor. É uma história de dois.

 

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