Observações sobre A casaca do Arlequim

20/03/2021

Em Vitruvius

Por Antoine Picon

É uma honra e um prazer ter sido convidado para falar hoje por ocasião da publicação da edição brasileira do grande livro de Heliana Angotti-Salgueiro, A casaca do Arlequim. É difícil acreditar que já se passaram quase vinte e quatro anos desde que o livro de Heliana foi publicado na sua versão francesa (1). Vinte e quatro anos é o tempo de uma geração. É obviamente um desafio formidável para uma obra histórica, que tem necessariamente a marca das teorias, obras e debates da época em que foi escrita, reaparecer em um contexto completamente diferente. No longo prefácio que escreveu para a edição brasileira do seu livro, Heliana Angotti-Salgueiro recorda com maestria e profundidade o contexto em que o livro A casaca do Arlequim foi elaborado. Este contexto é antes de tudo o de uma instituição, a École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde brilhantes e diversas personalidades – de Hubert Damisch a Louis Marin e de Marcel Roncayolo a Bernard Lepetit – se cruzavam.

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Na tese e no livro de Heliana Angotti-Salgueiro, esta diversidade é acompanhada por um trabalho meticuloso de teorização. A casaca do Arlequim baseia-se tanto na análise e tratamento de arquivos abundantes como em uma série de elaborações teóricas. De acordo com as reflexões de Bernard Lepetit, o livro baseia-se, por exemplo, em uma reflexão profunda sobre a relação entre as representações e as práticas. Também consegue articular de forma muito convincente a consideração de contextos gerais e os ensinamentos da micro-história, que era muito influente na época em que o trabalho foi escrito.

Mas a contribuição teórica essencial do livro reside sem dúvida na substituição da noção de influência (que tinha prevalecido até então), pela de transferência cultural. Embora Heliana Angotti-Salgueiro não seja a única protagonista desta grande mudança, o seu livro constitui uma das iniciativas mais fecundas no campo da história da cidade e da arquitetura. Ao contrário da influência, que é geralmente vista como uma via de mão única, a transferência é bem mais complexa. É acompanhada por fenômenos de tradução, adaptações criativas e hibridização com outras referências. As análises de Heliana sobre a forma como a arquitetura Beaux-Arts e a Haussmannisation são recebidas e adaptadas em Belo Horizonte são realmente magistrais. Gostaria de salientar a atualidade que elas conservam ainda hoje, para além do carácter pioneiro que tinham no final dos anos 1990. Fala-se muito atualmente de uma história global, uma história que deixou de raciocinar de uma vez por todas em termos de centro e periferia, de influências e modelos centrípetos interpretados de uma forma meramente normativa. Em retrospectiva, parece-me claro que A casaca do Arlequim é uma das primeiras contribuições para esta história global, exemplificada hoje pelo trabalho de Mark Jarzombek ou Kathleen James-Chakraborty. É sintomático que um estudante de doutoramento em história da arte em Harvard se tenha comprometido a escrever uma história global da arquitetura Beaux-Arts. Com toda certeza o livro de Heliana figurará de forma proeminente entre as suas principais referências.

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