O componente social nos mercados do vinho e da cachaça
Pesquisadora francesa analisa como produtores das duas bebidas transformaram seus negócios para se adaptar a diferentes contextos sociais
Em Edusp
Por Divulgação
A França tem uma longa tradição na vinicultura, a tal ponto que regiões como Bordeaux e Borgonha se tornaram mundialmente conhecidas por batizar seus vinhos. Apesar desse histórico, cepas de uvas comuns, como merlot, cabernet e chardonnay, só se popularizaram entre os franceses em meados dos anos 1960.
Esse fenômeno não diz tanto sobre nível de conhecimento acerca do vinho, mas principalmente sobre formas de representação social e de consumo local da bebida. A pesquisadora francesa Marie-France Garcia-Parpet explica a situação em “Mercados de Excelência e Mundialização: Vinho e Cachaça”, recém-publicado pela Edusp, em sua primeira versão em língua portuguesa.
Marie-France explica que viveu essa diferença de percepção sobre o vinho quando morou no Brasil, nos anos 1990. Certa noite, ela foi a um restaurante com seus colegas, que lhe perguntaram qual era o melhor vinho. Quando apresentada a garrafas de malbec e cabernet, a estudiosa percebeu que não conhecia aquelas palavras. Afinal, na França os vinhos ainda não eram amplamente conhecidos pelas cepas das uvas.
Em seu livro, a autora explica as intensas transformações que o mercado do vinho sofreu ao longo do século XX, com a popularização por todo o mundo em um contexto muito distinto do francês, em que as regiões vitícolas eram historicamente usadas para distinguir os produtos.
A edição em português inclui ainda um texto dedicado ao mercado da cachaça brasileira, escrito em parceria com a pesquisadora Patrícia Alves Ramiro. Tendo realizado estudos também no Brasil, Marie-France conheceu engenhos de cana-de-açúcar na região Nordeste e pôde averiguar semelhanças e diferenças entre as práticas de produção, consumo e comercialização das duas bebidas.
Você menciona, na apresentação do livro, que as suas pesquisas são distintas da economia neoclássica que você aprendeu no ensino superior. Quais são essas distinções?
Marie-France Garcia-Parpet: Nas minhas pesquisas e em toda a minha vida como pesquisadora, eu mostrei que, contrariamente à teoria neoclássica, que considera o mercado como mecanismo regulador intemporal e que regula as atividades econômicas, o mercado, na verdade, é uma construção social. Eu publiquei um artigo na França sobre o morango no qual fica evidente que essa construção, que os neoclássicos consideram como mercado perfeito, foi pensada por certas pessoas no século XIX e colocada em prática, especificamente, nesse caso do mercado do morango. E no caso do mercado do vinho, continuei com essa preocupação de reinserir a questão do componente social na economia.
A economia neoclássica, no caso, não chega a entrar na questão social ou só a coloca em segundo plano?
MFGP: Coloca em segundo plano. Você pode dizer que entra na questão social de vez em quando. Só quando esse modelo de mercado realmente não funciona, os economistas decidem pensar naquele caso específico, mas nunca se tem a impressão de que é uma coisa que está na sociedade, inclusive na sociedade atemporal. É como se essa maneira de regular a economia tivesse existido em todos os tempos, com algumas diferenças, mas em todo caso é como se o mercado funcionasse sem ser pensado, sem ser inventado, sem ser regulado. Na nossa sociedade, por exemplo, é como se esse mercado existisse sem o Estado, sem a noção de que os agentes sociais têm interesses diferentes e às vezes opostos, e que, portanto, vão construir regulações que favoreçam um ou que favoreçam outros. Mas, de qualquer maneira, estão ali para fazer as “leis” do mercado, porque aquilo não existe fora de uma concepção social.
Você pesquisa o mercado do vinho há muito tempo. Como esse interesse surgiu em sua pesquisa acadêmica?
MFGP: O que se discutia muito era a questão da qualidade dos produtos. Vi, por exemplo, muitos testes para as convenções de Luc Boltanski e de Laurent Thévenot sobre a possibilidade de um acordo quanto à qualidade dos produtos. Ao mesmo tempo, sempre dediquei atenção particular a isso porque achava que o vinho era um bom instrumento, porque pode ser uma bebida para o trabalhador e pode ser uma bebida de luxo. Pode até se transformar em um bem, quando você leva em conta o envelhecimento. Meu ponto de vista era justamente o dessa hierarquia de bens com forte componente simbólico. E quando comecei a minha pesquisa, vi que a questão do mercado mundial era crucial porque, nessa época (final dos anos 1990 e começo dos anos 2000), as vitícolas francesas viviam uma grande crise por conta do crescimento da viticultura nos Estados Unidos, nos países sul-americanos e no sul da África e da Austrália. Eu me dei conta de que aquilo era muito interessante, porque confirmava que se tratava de uma questão de representação do produto e que essa representação tinha a ver com a história e com a composição social. Não se fazia publicidade sobre vinho; o que dava prestígio ao vinho era a pessoa que o bebia. Por exemplo, quando um rei ou a burguesia consumiam esse vinho.
Quais as diferenças entre os mercados de vinho na França e no resto do mundo?
MFGP: Os produtores franceses viveram uma situação complicada com os vinhos do continente americano subindo no consumo internacional, até mesmo na França. Nos Estados Unidos se qualifica o vinho pela cepa, por exemplo, malbec ou merlot. É uma qualificação de vinho totalmente diferente da que ocorre na França. Naquela época, os franceses não conheciam a cepa, só se conhecia o vinho pelo local: os vinhos de Bordeaux, da Borgonha, da região do Loire. Para entender essa crise, era necessário um trabalho de sociologia ou de antropologia, com o intuito de conhecer as categorias de pensamento das pessoas mundo afora e também na França, onde a concepção da qualidade do vinho era totalmente diferente, e é até hoje. Nos Estados Unidos, também não se considera a data e o tempo durante o qual o vinho ficou engarrafado; portanto, não se distingue, por exemplo, o ano de 1847, que foi de uma excelente safra. Aqui na França todo mundo sabe disso. Quando você oferece um vinho de 1847, trata-se de uma grande honra. Na França se constituiu uma institucionalização que acabou sendo do Estado, a “denominação de origem controlada”. Era uma separação entre áreas que eram consideradas melhores ou piores para o cultivo voltado à produção do vinho. O interessante foi ver que, quando começou a crise, certas regiões que não eram consideradas de boa produção fabricavam vinhos de qualidade, porque às vezes contavam com cepas consideradas boas. Houve uma inversão, muitas pessoas na região começaram a entender que tinham um terreno bom para produzir vinho e passaram a vender sua produção para os Estados Unidos e para o mundo inteiro. E não tiveram receio de utilizar os nomes das cepas, porque os mercados internacionais entendiam essas categorias. Isso provocou uma revolução no campo da viticultura francesa, e hoje em dia, inclusive, muitas vezes se usa mais o nome da cepa do que a denominação de origem controlada.
A adaptação da sua pesquisa para o estudo da cachaça aqui no Brasil veio mais tarde?
MFGP: Antes de estudar vinho e morango, eu comecei minhas pesquisas no Nordeste do Brasil, na plantation açucareira. No final dos anos 1990, eu e meu marido, Afrânio Garcia Jr., recebemos o convite de Patrícia Alves Ramiro, que na edição brasileira escreve sobre a cachaça comigo, para voltar ao Nordeste e conhecer um engenho de cana. A mise-en-scène do engenho era totalmente inspirada nas vitícolas da França, ou seja, tudo que era antigo era valorizado, como a moenda, que chegou lá no século XVIII, e o cambito para carregar a cana. Tinha também uma pessoa que contava a história da cachaça, sobre ter sido uma bebida de escravizados. Então entendi por que eu, como pesquisadora do INRA (Institut National de la Recherche Agronomique ou Instituto Nacional da Pesquisa Agronômica), tinha sido requisitada pelo Sebrae para entrar em contato com as instituições francesas justamente para aprender o modelo de valorização desses produtos. Foi assim que eu fui estudar a cachaça. Foi interessante para ver que esse modelo de valorização não é só europeu. Luc Boltanski e Arnaud Esquerre escreveram um livro chamado “Enrichissement” (“Enriquecimento”, em português) que faz uma excelente análise sobre como o capitalismo se renova e como apareceu essa nova maneira de criar valor: a patrimonialização dos objetos. E Boltanski diz que, em outros países, isso não existe, quando, na verdade, dá para ver que isso está ocorrendo não só na França, mas em vários lugares. No Brasil acontece com vários produtos, como o queijo canastra, que segue a mesma linha da patrimonialização da maneira de fabricação, com a indicação de origem.
Que outras semelhanças e diferenças você identifica entre o vinho e a cachaça, no que diz respeito à história e ao mercado?
MFGP: O vinho tem uma história muito mais longa, é um produto nacional para os franceses há muito tempo, mas a cachaça também conta com a questão da valorização do produto artesanal, a mesma coisa que se faz com o vinho. A cachaça também se valoriza com o tempo, porque a produção hoje em dia leva em conta a estocagem em barris de madeira, da mesma maneira que se fez com o vinho, que começou a ser estocado na Inglaterra e valorizado ao ficar mais velho. A outra questão é como os produtores recorreram à criação da denominação de origem, que já existe em Minas Gerais. No caso que eu estudei, estão lutando para conseguir essa denominação. Então, é um processo muito semelhante, incluindo também o desenvolvimento do turismo. Tudo é muito parecido. Não são iguais, é preciso ter cuidado, mas algumas coisas em relação ao vinho e à cachaça são parecidas.
Todos esses aspectos semelhantes e diferentes, incluindo os processos de produção de cada produto, foram mudando ao longo dos anos, das décadas e até dos séculos. Como você enxerga o elemento social nessas mudanças?
MFGP: Na França, o vinho era consumido diariamente, era um costume muito seguido. Havia vinhos de pior e melhor qualidade, mas não havia livros que classificavam e descreviam os vinhos, como hoje em dia. Esse tipo de socialização do conhecimento do vinho era feito na vida cotidiana. Se você era, por exemplo, da sociedade burguesa, você era levado a consumir vinhos mais sofisticados. Nos Estados Unidos, o vinho não era uma bebida conhecida, era de origem italiana, produzida por imigrantes, uma coisa restrita. Até que, nos anos 1960, quando vários italianos começaram a fazer vinho, eles tinham que explicar o que era o vinho, qual era a vantagem de seu produto. Então eles empregaram outros meios além do caminho tão somente social. Começaram com a publicidade no rádio e na televisão e depois publicaram guias de consumo de vinho. E a representação desses vinhos é totalmente diferente; estamos diante de representações sociais que não se comunicam. Os produtores franceses enfrentaram essa crise porque a chave do entendimento da excelência era diferente do que eles tinham construído socialmente. A partir de certo momento, foram adotadas no sul da França categorias como pinot noir e malbec. Esses vinhos foram beneficiados porque, apesar do desconhecimento dos americanos e dos brasileiros sobre os vinhos franceses, eles tinham a ideia de que o vinho francês era o melhor do mundo. Então, eram adicionados dois pontos positivos: um vinho francês e um vinho que você sabia escolher. E a exportação foi incrível! Esse é um mercado em que a construção social e as representações do produto são absolutamente essenciais.
Na França, o conhecimento das regiões é o bastante para reconhecer os vinhos. Existe uma dificuldade quando você sai do país, já que diferenciar essas regiões não é algo que todo estrangeiro sabe?
MFGP: Sim. Teve um vinho muito conhecido que foi oferecido ao Lula, um Romanée-Conti, safra 1997, e essa foi a maneira de os brasileiros conhecerem o nome desse vinho. Uma região para nós, franceses, faz enorme diferença: se o vinho vem de Bordeaux, se vem da Borgonha. E até dentro da Borgonha há várias pequenas classificações. Essas nós mais ou menos conhecemos, talvez nunca tenhamos bebido, mas já ouvimos falar. Está na nossa cabeça. Outra coisa interessante é uma concepção americana que se espalhou pelo mundo: pensar que a química vai resolver tudo. Hoje você corrige os defeitos do vinho através da química. Esses produtores americanos dizem que é preciso lutar contra a natureza para fazer um bom vinho. É o contrário da maneira francesa de pensar o vinho, porque é justamente o fato de aquela região ter, por exemplo, um vento específico no outono que vai resultar em um vinho bom. Então, são duas concepções totalmente diferentes, mas, com a globalização, o que se vê agora é que, na verdade, esse tipo de classificação por região tende a desaparecer. É claro que, embora a região de Bordeaux esteja atravessando uma crise muito forte, um Bordeaux ainda é conhecido como Bordeaux, mas em outras situações você chega e simplesmente pede um pinot noir, por exemplo.
De que outras formas os produtores mais tradicionais foram se adaptando a todas essas mudanças que houve no mercado francês e no mundo todo? Poderia citar algum caso bem-sucedido ou malsucedido para ilustrar?
MFGP: Os grandes produtores não perderam a sua qualificação, mas os que já estavam bem estabelecidos na verdade foram os que sofreram mais, porque não se deram conta de que tinham que mudar a maneira de se expressar. E em geral são pessoas mais externas em relação ao mundo vitícola. Por exemplo, empresários que tiveram contato com outros meios, que perceberam que, na verdade, essas categorias francesas estavam em decadência. Precisavam falar do vinho de outra maneira. Alguns produtores, por exemplo da Borgonha, uma região que era altamente valorizada, fizeram o quê? Compraram terras no sul e no leste da França, cujo solo se dizia não ser bom, e se apropriaram dessas categorias novas e do próprio reconhecimento que tinham antigamente. Eles atuam nessas duas frentes. Mas vários produtores perderam muito, porque o mercado internacional está ganhando muito espaço, inclusive na França. E os mercados estrangeiros preferem essas categorias simples, com oito a dez tipos de cepa. Mas o consumo local dos vinhos de todo dia, vamos dizer assim, também diminuiu.
Como uma crise econômica de maior escala, uma crise mundial ou uma crise local não só focada na produção do vinho ou da cachaça afetam particularmente esses mercados?
MFGP: Há anos em que os viticultores vendem mais ou vendem menos. Sobretudo para os franceses, a estocagem de vinho é uma coisa muito cara, o capital fica imobilizado e é muito complicado. Quando você está numa crise, a tendência é preferir vender seus estoques de vinho, que poderiam ficar armazenados para serem consumidos com dez anos de idade, por exemplo.
Por que você preferiu usar o termo “mundialização” e citar a “globalização” entre aspas? Qual a distinção?
MFGP: Eu faço questão de usar “mundialização” porque, na verdade, o tema “globalização” se relaciona mais com as coisas econômicas, e a mundialização não é só uma questão econômica, há aspectos sociais que são absolutamente essenciais para entender esse mercado. Quando ocorre uma crise, quais agentes sociais se dão melhor? Nem todos os indivíduos pensam e agem economicamente da mesma maneira, então é essencial pensar o mundo e evitar usar esse termo, que é redutor.