Nono volume da Biblioteca Durkheimiana traz debate sobre limites da pesquisa histórica
Em “A Causalidade em História”, François Simiand admite visão de contingências no escopo do estudo de historiadores, mas contesta diferenciação de ciências em geral
Em Edusp
Por Divulgação
O nono volume da Biblioteca Durkheimiana apresenta uma discussão que permeou a pesquisa dos historiadores brasileiros e ainda mantém sobre ela uma sombra. Recém-lançado pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), “A Causalidade em História”, de François Simiand, questiona se há limites para que a história seja considerada uma ciência como as outras, já que aborda questões que refletem contingências do comportamento das pessoas, que não poderiam ser “reproduzidas em laboratório” como ocorre na química ou na física, por exemplo.
Coordenador da coleção ao lado da socióloga Raquel Andrade Weiss, o historiador Rafael Faraco Benthien afirma que Simiand não nega a liberdade das pessoas como parte do escopo de estudos da disciplina. Contudo, o francês afirmava que as casualidades não produzem um sentido por si só e seguem regularidades sociais e psíquicas e que as demais ciências consideram as probabilidades.
Benthien diz que o nono volume é um exemplo de como a Biblioteca Durkheimiana busca ampliar a compreensão e a crítica sobre a escola sociológica francesa, e não colocá-la como essencial. O trabalho coletivo de cada edição objetiva mostrar que o resgate de textos menos conhecidos e a leitura de clássicos somente expandem os horizontes dos pesquisadores.
O que é a coleção Biblioteca Durkheimiana e qual a importância para estudantes e pesquisadores?
Rafael Benthien: A Biblioteca Durkheimiana é uma iniciativa editorial coordenada pela Raquel Andrade Weiss, socióloga vinculada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e por mim, historiador lotado na Universidade Federal do Paraná (UFPR). A coleção foi encampada pela Edusp em 2012 e os primeiros volumes, publicados em 2016. De lá para cá, foram nove livros e há três em preparação. Sobre a importância, dá para pensar a coleção a partir do seu objeto, a partir do seu método e a partir da sua finalidade. O objeto é duplo. De um lado, aborda os trabalhos de um coletivo que se via como tal. Se olharmos a partir do final do século XIX, assistiremos à organização de uma escola sociológica francesa e esse termo é nativo, reivindicado por quem é integrado ao grupo e por quem está fora do grupo, o que não significa que não existam diferentes maneiras de qualificar essa escola. Compõem esse grupo personalidades distintas que vão se engajar em direções múltiplas. O outro lado da moeda é que o trabalho desse coletivo entra nas genealogias intelectuais que vão sendo construídas na sequência pelos seus sucessores. Se ao longo do século XX outras escolas vão se remeter à escola sociológica francesa, ou durkheimiana, porque estava atrelada ao nome de Durkheim como uma espécie de totem do grupo, esse grupo é integrado a uma série de cânones diferentes. Dessa escola aparecem textos que são reconhecidos como clássicos no âmbito de várias disciplinas: da sociologia, da antropologia, da história, da linguística, da geografia, só para mencionar os vínculos mais explícitos. Eu e Raquel publicamos um artigo na revista “Sociologias”, em 2017, no qual indicamos que muitas dessas leituras remetem a uma visão mitológica dos durkheimianos. Os seus trabalhos são lidos por certas chaves, ora positivas, ora negativas, para justificar trabalhos disciplinares atuais. A questão é se essas leituras são bem-feitas, e o objeto da coleção é a articulação dos textos dessa escola e das tradições interpretativas que recaem sobre ela. Para passar ao ponto do método é importante explicitar a relação desse duplo objeto com a história do sistema de ensino e de pesquisa brasileiro. É preciso lembrar que pesquisadores próximos a essa escola estiveram no Brasil nos anos 1920, como Georges Dumas, Lucien Lévy-Bruhl, Paul Fauconnet, que vieram para cá em missões científicas. A partir dos anos 1930 surgiu uma leva de outros pesquisadores que eram alunos desse pessoal, como Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide. Isso significa que a nossa relação com essa escola tem raízes profundas e essas raízes sobreviveram, bem ou mal, à reforma universitária imposta pelo regime militar e à complexificação das ciências sociais brasileiras, induzida em grande parte por uma injeção significativa de dinheiro pela Fundação Ford, por meio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Essa escola faz parte da nossa história. Sobre o método da coleção, escolhemos, em geral, textos curtos e artigos que visam apresentar ao leitor uma edição bilíngue e crítica desse material. O caráter crítico vem da recuperação da história do manuscrito. No Brasil, muito provavelmente em função de uma tradição católica, temos problemas sérios em relação ao estudo dos textos segundo uma agenda filológica e crítica. A nossa ideia é problematizar a fatura expressiva do artigo escolhido, sublinhando as transformações ao longo da vida dos autores. Privilegiamos, em geral, a última edição que o autor controlou em vida e mostramos como são introduzidas mudanças no texto, em notas de rodapé que são colocadas junto ao texto francês. Então a gente historiciza o texto, mostra que foi sofrendo modificações ao longo da sua história. A opção por uma edição bilíngue é também um gesto de reconhecimento da inteligência do leitor, porque estamos cientes da dificuldade do trabalho de tradução. A língua é um registro simbólico extremamente plástico e complexo, e aqui se lida com um francês muito particular, que é o francês das elites científicas do final do século XIX e começo do século XX. Queremos que o leitor tenha consciência dessa distância e também das nossas escolhas, que sempre guardam, em alguma medida, uma dose de arbitrariedade. Por fim, há um trabalho de contextualização do artigo escolhido como carro-chefe do volume. Situamos, com esse objetivo, no fim de todos os volumes uma série de anexos que são documentos de época, como resenhas, cartas e necrológios. Isso ajuda a construir uma leitura mais rica do texto principal, que não existe sozinho. Uma leitura puramente interna não dá conta de uma apreensão mais equilibrada, mais matizada. No dossiê crítico, convidamos especialistas para reagir a esse texto, convite que vem sempre na forma de um cheque em branco. Por vezes são discutidos a trajetória do autor e o espaço intelectual em que ele se insere; em outros casos se propõe uma leitura do texto principal ou então se combinam as duas coisas. O importante é que essas reações possam ampliar para os leitores as possibilidades de acesso a essa parte da tradição sociológica francesa. Aliás, é importante que se diga que buscamos trazer para a coleção textos pouco conhecidos, nem sempre das figuras mais emblemáticas do grupo. Sobre o objetivo da coleção, em uma entrevista na revista “Campos” em 2012, Márcio Goldman, antropólogo brasileiro lotado no Museu Nacional, lançou a seguinte questão: será preciso produzir durkheimianos para depois avisar que Durkheim já era? O que acho que precisamos perguntar antes de dizer se um autor ou uma tradição estão com a data de validade vencida é se estamos lendo bem esse autor ou essa tradição. No Brasil se lê muito mal os trabalhos da escola sociológica francesa. São quase sempre os mesmos textos, mobilizados pelas mesmas chaves. Com raras exceções, estamos diante de mitologias rasas e de perspectivas muito estreitas. Isso significa que queremos formar durkheimianos ou reclamar o monopólio da leitura correta dessa escola? Não. Nosso propósito é permitir uma relação aberta, que seja menos barata e menos autocentrada, com os passados disciplinares. Para isso, resgatamos outros textos, outros nomes e levantamos outros problemas. Esse esforço não é absolutamente central para a formação de um pesquisador. A escola sociológica francesa não inventou a roda e é possível percorrer outros caminhos para ter uma formação séria, para realizar uma pesquisa séria. Ainda assim, não se perde nada ao ler os trabalhos dessa escola. Precisamos resgatar a proposta de Italo Calvino no livro “Por que Ler os Clássicos”, o que não é absolutamente indispensável, mas só ganhamos com isso. A nossa expectativa é que, ao abrir o passado das ciências sociais, possamos mostrar aos nossos contemporâneos que esse passado é mais rico e complexo do que as mitologias disponíveis no mercado dão a entender. Ao fazê-lo, a gente espera poder abrir também o futuro das disciplinas. Porque as tradições não existem para serem perpetuadas, mas o conhecimento bem equilibrado e balizado de uma tradição é uma condição sine qua non para sua superação.
Como é o trabalho de coordenação de uma coleção como essa?
RB: Cada livro é um livro e buscamos animar um trabalho que é coletivo. Envolvemos pessoas de disciplinas diferentes, com agendas distintas, e o interessante de cada um desses trabalhos é que a gente sabe como começa, mas nunca sabe como termina. O volume é o resultado dessa experiência coletiva de traduzir o texto, colocar em discussão, levantar material em arquivo. Muitos dos volumes trazem cartas e publicações inéditas por conta desse modus operandi da coleção. Um aspecto que fica bem claro nesse último volume é a formação de pesquisadores. Muitas vezes lidamos na parte da revisão, da tradução e da escrita de capítulos com pesquisadores que estão sendo formados nos mestrados e doutorados. Envolver essas pessoas na produção é também fazer com que a coleção se reverta em um ateliê de atividades práticas, uma forma de romper com uma chave disciplinar muito fechada. Todos os volumes têm uma carga interdisciplinar, com pessoas de gerações diferentes e com competências diferentes, para que tragam materiais com uma feição distinta e que possam provocar públicos distintos.
É dito que esse volume da coleção, “A Causalidade em História”, de François Simiand, está entre os textos que melhor permitem tensionar a história da historiografia e das ciências sociais. Por que essa avaliação?
RB: Esse volume polemiza sobretudo com a corporação nacional dos historiadores. Organizei com dois jovens doutorandos muito promissores, Miguel Drigo e Robson Bertasso, e participaram também dois outros colegas já estabelecidos: o professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Sérgio da Mata e Miguel Palmeira, da Universidade de São Paulo (USP), além da doutoranda da USP Mariana Osés. O Simiand não é exatamente um desconhecido entre os historiadores brasileiros, mas é, na esmagadora maioria das vezes, retomado com base em um mesmo e único texto: um longo artigo de 1903 chamado “Método Histórico e Ciência Social”. Esse artigo já foi traduzido no Brasil há mais de duas décadas e a leitura é dominada por chaves relativamente antagônicas. Para um grupo, Simiand aparece como um ancestral direto da historiografia moderna, que precisa ser lido como um precursor, palavra que representa ao mesmo tempo um elogio e uma crítica por ser alguém que prefigura o futuro da ciência, mas já está ultrapassado. Há ainda aqueles que o leem como se fosse uma peça de antiquário de uma época ultrapassada, em que se apostava de uma forma ingênua no vínculo entre a ideia de história, de ciência social e de ciência de uma maneira geral. Nossa aposta é mostrar que as coisas podem ser mais complexas e que ganhamos ao complexificar a nossa relação com esse passado. O texto traduzido como carro-chefe do volume, apresentado de forma bilíngue e crítica, é uma conferência de 1906, “A Causalidade em História”, na qual se discute o caráter explicativo dessa disciplina. Muitos dos contemporâneos do Simiand, e isso ainda está presente hoje, apontam que há limites para que a história seja uma ciência como as outras porque lida com fatos circunstanciais e contingenciais. Estão em questão os quereres, a liberdade das pessoas, e negar essa contingência significaria negar a liberdade. Simiand não nega que existe uma contingência na história. O que ele nega é que essa contingência possa produzir, por si só, algum móvel explicativo. Todos os raciocínios da física contemporânea, da química contemporânea, são raciocínios probabilísticos. Porque as partículas tendem a reagir ora de uma forma, ora de outra, e a questão é tentar entender quais são os elementos engajados em cada um desses comportamentos, sejam dominantes, sejam recessivos, frequentes ou menos frequentes. Simiand levantou questões análogas a essa que apareceram naqueles mesmos anos, porque também no início do século XX há uma guinada nas ciências que chamamos de forma equivocada de exatas. O que ele diz é que simplesmente existem escolhas, mas essas escolhas não são feitas no vazio. Que existem regularidades na vida social, existem regularidades na vida psíquica, e a gente não pode explicar as ações humanas sem levar em conta essas regularidades. São escolhas que são feitas baseadas em regularidades. Então ele opta por uma compreensão científica da história, mas tentando mostrar que, em relação especificamente ao problema da causalidade, a história não se diferencia das outras disciplinas. Portanto, também lida com padrões que não são completamente aleatórios. A julgar pelo rebuliço que a comunicação do Simiand provocou – adesões, contestações, reações –, a questão era quente e me parece que continua quente, o que torna esse debate historicamente interessante de um ponto de vista formativo.
Por que os historiadores contestavam a visão de que o seu campo de estudo era distinto daquele das ciências sociais? Qual a importância desse debate, iniciado em 1906?
RB: Acho difícil falar de historiadores no atacado. Nenhuma corporação é totalmente homogênea e alguns contestavam as afirmações do Simiand, outros não. As perguntas que Simiand trouxe permanecem ativas e as diferentes reações a essas perguntas escoram posições muito distintas. Há alguns anos houve um debate mais intenso em torno da regulamentação da profissão de historiador e ressurgiram muitos dos argumentos daquele contexto, que são contraditórios entre si, concorrenciais, e estavam na ponta da língua dos contemporâneos do Simiand, só que raramente a gente volta a esses debates. O que me parece significativo é que muitos dos nossos dilemas ainda continuam. O meu colega Sérgio da Mata nos lembra que muita gente fala de historiografia pós-moderna como se fosse uma novidade, mas enxergamos nela coisas que estão no historicismo do século XIX. Tratamos como novidade coisas que já estavam postas há mais de um século e, se quisermos seguir adiante, precisamos colocar isso em questão.
Quais serão os próximos temas abordados na coleção?
RB: O próximo volume está bem adiantado, com a tradução e todo o aparato crítico já feitos. Estou esperando os textos que encomendei de profissionais de áreas distintas e selecionando os anexos. É um texto do Henri Hubert que foi publicado originalmente em 1914, chamado “O Culto dos Heróis e Suas Condições Sociais”, que em 1919 foi inserido em um livro como um prefácio. Vamos recuperar um pouco a história desse texto, porque tem variações entre a versão prefácio e a versão artigo, e também problematizar o lugar desse texto na história da reflexão da escola sociológica francesa sobre a religião, além das apropriações que dele foram feitas na sequência. É um texto muito pouco conhecido do Hubert, que nunca foi publicado em português. Só conhecemos uma tradução dele para o inglês que é bem recente. No volume 11 esperamos trazer uma conferência inédita em português do Lucien Lévy-Bruhl que é conhecida no Brasil, “A Mentalidade Primitiva”. Nesse texto ele tenta condensar o conjunto de reflexões que desenvolveu ao longo do processo que implica a produção da mentalidade primitiva, mas vai além dele. Ele publicou um total de seis volumes sobre essa questão e essa conferência inglesa é interessante porque achamos que consegue resumir bem a questão desse trabalho que estava em andamento. É uma forma de trazer inclusive um novo nome para essa coleção, ampliar o escopo e permitir que novas gerações tenham acesso a essa agenda específica do grupo. Por fim, em uma aposta um pouco mais ousada, queremos fazer em português uma nova tradução do “Ensaio sobre a Natureza e a Função do Sacrifício”, um texto publicado por Henri Hubert e Marcel Mauss no início de sua carreira, em 1899, e republicado por eles duas vezes, em 1909 e 1929. O Brasil já tem duas traduções desse texto, que é um clássico bastante lido por aqui, mas as traduções disponíveis são frágeis porque todas remetem à versão original de 1899 e não levam em conta as publicações e as modificações posteriores. Também apresentam uma série de erros na transcrição do grego, que eles utilizam muito nesse texto. Muitas notas de rodapé desapareceram e não sabemos o porquê dessa escolha dos editores. Temos hoje à disposição uma série de cartas pessoais que são importantes para tornar a relação com esse texto mais rica, para poder traduzi-lo de outra forma e para mostrar como foi produzido. Durante boa parte do processo produtivo desse artigo, os autores estavam distantes um do outro, então trocaram muitas cartas a respeito do trabalho. A ideia desse volume é não só oferecer uma tradução de uma versão mais atual como também introduzir um aparato crítico e colocar nos anexos toda essa correspondência entre Mauss, Hubert e Durkheim, que revela os bastidores da produção do texto.