“Não há como pensar em direitos autorais de modo dissociado da história da arte”

Marcelo Conrado afirma em “Arte, Originalidade e Direitos Autorais” que a legislação precisa correr atrás da evolução de conceitos como originalidade e apropriação

Em Edusp

Por Divulgação

Se uma pessoa usa uma ferramenta tecnológica para passar instruções e encomendar uma obra artística, o autor é quem teve a ideia ou quem a executou? Pode-se pensar hoje que se trata de uma discussão sobre inteligência artificial, mas o caso ocorreu 101 anos atrás, quando o pintor e fotógrafo húngaro László Moholy-Nagy usou o telefone para descrever pinturas em porcelana a uma fábrica, caso que mostra a dificuldade de as leis sobre direitos autorais atenderem ao mundo das artes.

É essa discussão que o advogado, professor, pintor e fotógrafo Marcelo Conrado aborda no livro “Arte, Originalidade e Direitos Autorais”, lançado oficialmente pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) em 27 de maio. Na publicação, ele afirma que é preciso compreender a história da arte para, dentro do direito, responder a todas as mudanças ocorridas ao longo dos séculos em conceitos como autoria, originalidade e apropriação.

Como se relacionam a história da arte e o direito?

Marcelo Conrado: A análise dos direitos autorais na arte, em especial na arte contemporânea, necessita da compreensão dos conceitos de autoria e originalidade. Não são conceitos jurídicos. Não há como pensar em direitos autorais de modo dissociado da história da arte e é esse o propósito do livro, que começa com a citação de uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos do século XIX, mas que continua atual. O juiz Oliver Wendell Holmes Jr. afirmou que “pode haver dúvidas consideráveis, por exemplo, se as gravuras de Goya ou as pinturas de Manet teriam sua proteção garantida na primeira vez que foram exibidas”. Pessoas habituadas apenas com o direito, segundo o juiz, precisam buscar subsídios na arte para decidir sobre direitos autorais. O livro passa por diversos momentos da história da arte para pensar a autoria e suas transformações, para lembrar que tal conceito está em movimento. Esse caminho é necessário para verificar se as bases da construção da legislação de direitos autorais ainda são adequadas para a atualidade. Na nossa legislação, a lei 9.610/1998 completou 25 anos, mas está baseada na Convenção de Berna, que é de 1886, ainda que esta tenha passado por algumas revisões. Há então um descompasso, sobretudo entre a arte contemporânea e a legislação de direitos autorais. Menciono um exemplo atual: as obras produzidas por inteligência artificial (IA). Quem é o autor? O que caracteriza a IA é o fato de ser uma ferramenta em que há pouca interferência humana. Quem está à frente das decisões no processo de criação pode ser a própria tecnologia. Fornecemos informações por meio de palavras e a IA cria as imagens. E o que pode ser considerado original nessas situações? Em março, o Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos (USCO) considerou que imagens criadas por IA podem ser protegidas, dependendo da criatividade humana envolvida. Já existem processos judiciais movidos por artistas e bancos de imagens contra empresas de IA, para questionar direitos autorais. Porque o processo de criação dos artistas e o acervo de fotografias podem ter sido usados para treinar os softwares de IA. Temos ainda obras de arte em NFTs, metaverso, realidade aumentada e realidade virtual, entre outras tecnologias, que desmaterializaram o suporte da obra. Essas são novas questões que trazem impactos para a autoria e para os direitos autorais. Ainda que o livro não trate de várias dessas situações por serem muito recentes, é oportuno sinalizar as direções que a arte e os direitos autorais estão seguindo.

Como evoluíram os conceitos de arte, autoria, originalidade e apropriação? Pode citar exemplos de obras conhecidas?

MC: O dadaísmo nos mostra que o artista não é apenas aquele que produz manualmente um trabalho pelas técnicas tradicionais, mas é também aquele que escolhe. Um objeto industrial pode ser transformado em obra de arte. São os ready-mades de Marcel Duchamp. No Brasil, quem trouxe muitas contribuições para os conceitos de autoria e apropriação foi o Nelson Leirner. Além dos ready-mades, a autoria também se modificou, por exemplo, quando em 1922 o artista húngaro László Moholy-Nagy encomendou uma série de pinturas por telefone. Tais obras foram executadas a distância conforme as especificações do artista e, em seguida, entregues a ele. Mas quem é o autor? É aquele que teve a ideia ou quem executou a obra? Os direitos autorais têm dificuldade para dar respostas às questões envolvendo os conceitos de autoria, obra e originalidade. E aqui estamos falando de algo que aconteceu um século atrás. No livro é possível encontrar diversos casos de artistas envolvidos em controvérsias sobre direitos autorais, como Jeff Koons, Richard Prince e Robert Rauschenberg. A apropriação tem sido uma das maiores causas de demandas judiciais sobre direitos autorais. Posso também trazer um exemplo recente, que é um caso que teve a decisão dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos divulgada no último dia 18 de maio. A fotógrafa de celebridades Lynn Goldsmith propôs uma ação contra a Fundação Andy Warhol. Goldsmith fez uma foto do músico Prince em 1981, que Andy Warhol utilizou para produzir uma obra que ilustrou um artigo sobre o músico na revista “Vanity Fair” em 1984. Pelo uso da fotografia a fotógrafa recebeu quatrocentos dólares. No entanto, Warhol produziu mais obras a partir da fotografia que Goldsmith fez de Prince. A fotógrafa disse que somente teve conhecimento desse fato depois que Prince faleceu. Goldsmith não foi remunerada por direitos autorais relativos a essas obras. O caso, que já havia passado por instâncias inferiores, foi julgado pela Suprema Corte a favor da fotógrafa. Em sua defesa, a Fundação Andy Warhol alegou que as obras não eram derivadas da fotografia de Goldsmith, porque se tornaram originais pela transformação do artista. A defesa também invocou o fair use, que permite o uso da imagem sem a necessidade de autorização do fotógrafo. A juíza Sonia Sotomayor disse que as “obras originais da fotógrafa, como as de outros fotógrafos, têm direito à proteção de direitos autorais, mesmo contra artistas famosos”. Em outras palavras, a decisão pode restringir a apropriação de fotografias pelos artistas. Já para a juíza Elena Kagan, que também participou do julgamento, “isso impedirá novas artes, música e literatura. Impedirá a expressão de novas ideias e a obtenção de novos conhecimentos. Isso tornará nosso mundo mais pobre”. A decisão foi por sete votos contra dois. Voltando os olhos para a autoria no Brasil e para os conceitos de arte e originalidade, um dos temas que requerem atenção é a arte indígena, bem como os instrumentos para a sua proteção jurídica.

Quais são as especificidades do grafite e de novas artes gráficas?

MC: A essência do grafite está na transgressão, no anonimato e no não consentimento do proprietário para que o grafite seja realizado. Como obter a autorização para o uso da imagem de um grafite quando a autoria está no anonimato? Além disso, o grafite, se realizado em desacordo com os requisitos da lei 12.408/2011, pode ser considerado crime. A lei exige que o grafite tenha autorização do proprietário do imóvel onde será realizado. O direito então depara com uma controvérsia: é possível proteger por direitos autorais uma obra ilícita? E surgem outras questões: a quem pertence o grafite? Ao proprietário do suporte, do muro, ou ao artista? O grafite pode ser apagado sem o consentimento do artista? Se o grafite está na rua, a imagem pode ser reproduzida sem autorização? No Brasil, já existem várias decisões judiciais envolvendo o grafite, especialmente em São Paulo.

Como a relação entre direito e arte interfere no acesso do público à cultura?

MC: O acesso à cultura é tema central do livro. Para defender esse direito, recorremos à teoria do mínimo existencial, desenvolvida pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), quando se refere ao estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Resumindo, o direito deve resguardar um mínimo de patrimônio para que uma pessoa possa ter uma vida digna. No livro, essa teoria é ampliada para a arte e a cultura. É preciso ter um mínimo de acesso à cultura para que uma pessoa tenha uma vida digna. É direito de todos o acesso a obras de arte, mesmo no caso da recusa imotivada de herdeiros dos artistas. Por exemplo, as obras dos artistas deveriam estar em exposições e suas imagens, em livros, catálogos e demais publicações. O direito individual dos herdeiros, por exemplo, não deve prevalecer sobre o interesse público de acesso aos bens culturais. Com isso, não se retiraria direitos dos herdeiros, que seriam equilibrados com os direitos coletivos. As questões jurídicas que envolvem herdeiros às vezes podem ser conflituosas, e a situação é sensível, porque não existem substitutos na arte. Lygia Clark, por exemplo, é única. Como publicar um livro, um catálogo ou realizar uma exposição sobre o neoconcretismo no Brasil sem a presença das obras de Lygia Clark? Para evitar essas situações, os artistas devem pensar no planejamento sucessório.

Há necessidade de atualizar a legislação brasileira?

MC: Sim, em diversos aspectos. Menciono uma situação: é necessário atualizar a lei em razão da inteligência artificial, que traz profundas mudanças nas artes visuais, música, literatura, entre outras áreas. Aliás, o MoMA (Museu de Arte Moderna, em Nova York) recentemente inaugurou a exposição “Não Supervisionado” (“Unsupervised”), do artista Refik Anadol, pioneiro na utilização da IA. As obras foram criadas a partir de imagens do acervo do próprio museu. Essa tecnologia é um tema central nos direitos autorais e vai exigir que a legislação seja repensada, além das questões éticas que envolve. Há também mudanças em curso, como o projeto de lei 4.007/2020, do senador Chico Rodrigues (PSB-RR), que pretende alterar a Lei de Direitos Autorais para dispensar os museus do pagamento de direitos autorais para o uso de imagens de obras dos acervos. Segundo o senador, o projeto, que está em tramitação, possibilitaria que os museus tivessem maior segurança jurídica e ampliassem a difusão da arte, permitindo o uso das imagens em todas as mídias. 

 

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