Livro aponta a influência das óperas europeias na construção do romance brasileiro e na sociedade pós-colonial
“Ópera Flutuante: Teatro Lírico, Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado” retrata a presença do drama musicado na capital do Brasil no século XIX
Em Edusp
Por Divulgação
Foi a leitura de romances, principalmente de Machado de Assis e José de Alencar, que despertou no doutor em língua portuguesa e espanhola e mestre em literatura Marcelo Diego a intuição de uma ligação intrínseca entre as óperas europeias, a sociedade carioca dos períodos colonial e pós-colonial e sua influência na produção literária brasileira da época. Essa é a relação que ele analisa no livro “Ópera Flutuante: Teatro Lírico, Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado”, publicado pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp).
O material que subsidiou a elaboração da obra foi o resultado da pesquisa para sua tese de doutorado. No livro, Diego mostra como as apresentações de grupos de ópera europeus no Rio de Janeiro estão presentes nas narrativas cotidianas das personagens dos romances, e também como a estrutura operística influenciou na forma de produzir literatura no século XIX. Ainda, busca demonstrar como o teatro operístico reproduz a estratificação social da época, presente na realidade de todas as classes de então.
Como o senhor identificou essa relação que a produção lírica europeia teve com a sociedade do Rio de Janeiro no século XIX, provocando a formação de uma literatura brasileira nessa época?
Marcelo Diego: O livro foi escrito com base no resultado da pesquisa para minha tese de doutorado e o ponto de partida foi a leitura dos romances brasileiros do século XIX, sobretudo do principal escritor para mim, Machado de Assis, e de outro importantíssimo para minha formação, José de Alencar. Lendo os seus romances, percebi quanto a ópera era presente. As personagens vão a óperas, as mencionam nos diálogos, tocam ao piano determinada ária, às vezes acompanhada de canto, às vezes não. Depois dessa primeira intuição, comecei a ver que a ópera aparecia no romance brasileiro do século XIX não só como pano de fundo, mas também de maneira estrutural, nas relações. No romance, a articulação de algumas cenas lembrava muito um coro, um dueto, um trio, ou uma grande ária de uma personagem só. O enredo dos romances brasileiros daquele século lembrava muito o das óperas. Então, o material surgiu a partir dessa percepção, e não de uma hipótese teórica ou da historiografia. Paralelamente a esse meu entendimento, havia um interesse em observar o trânsito transatlântico de bens culturais de uma forma não só vertical, mas também horizontal. Não só na relação existente entre a metrópole e a colônia, mas também como circulavam dentro do Brasil ou na relação com outros países latino-americanos. A tese de doutorado observou o movimento de companhias de ópera e o impacto sobre a cena literária de Rio de Janeiro, Havana e Buenos Aires, cidades na América Latina. Quando resolvi transformar a tese em um livro, decidi tratar do que acontecia no Brasil e me concentrei na relação entre o repertório europeu e a ópera, especificamente na capital nacional. Sobre a escolha da cidade do Rio, se em 2023 falar de Brasil já é uma abstração devido à grande diversidade, imagine no século XIX, sem todos os mecanismos de comunicação e circulação que existem hoje em dia. Como falar de Manaus e Porto Alegre como se fossem a mesma coisa? Por isso, tive a ideia de observar a cena de uma cidade. A cultura circula dentro de um cenário marcado no horizonte e, numa cidade, jornais circulam, as pessoas vão até determinados teatros, conversam, frequentam as mesmas livrarias, os mesmos cafés. A cidade me parece dar uma dimensão mais interessante para observar a conformação de determinados repertórios e hábitos, de determinada dinâmica sociocultural, muito mais do que a nação naquele momento.
E como a ópera e a literatura se relacionaram no século XIX?
MD: Para compreender isso, temos de regressar mais. Literatura e ópera sempre se relacionaram. Radicalizando um pouco a proposta, podemos dizer que sempre existiram em simbiose, porque desde o início a ópera, no Renascimento florentino, era considerada dramma per musica, um drama para acompanhamento musical. Ao ser, desde a concepção, entendida como um drama, tem uma raiz literária. As fontes de inspiração, muitas vezes, foram literárias, como “Lucia de Lammermoor” (de Gaetano Donizetti), que é baseada em “The Bride of Lammermoor”, de Walter Scott, ou “O Barbeiro de Sevilha” (obra de Gioachino Rossini inspirada em uma peça do dramaturgo francês Pierre Beaumarchais que tem o mesmo título). Em todas as grandes óperas, a fonte para o compositor e o libretista é um romance, uma peça de teatro, um poema narrativo. Há grande quantidade de obras escritas com base em peças de Shakespeare; por exemplo, “Otelo” e “Macbeth”, de Giuseppe Verdi. Evidentemente, no universo da cultura, tudo é uma via de mão dupla. Então, assim como vêm da literatura as narrativas que são transpostas para o gênero da ópera, no século XIX podemos observar que há também um caminho inverso, da ópera que penetra na literatura. Na tradição ocidental do romance do século XIX, as personagens vão à ópera e comentam aquelas a que assistiram. O narrador compara as personagens do seu romance às do teatro lírico, o autor recria no romance uma trama análoga à de uma ópera. Esse movimento de mão dupla, na minha percepção, torna-se mais presente do que nunca no século XIX – ainda que possa ser detectado em alguma medida nos séculos XVIII e XX –, talvez por ter sido o grande século tanto da ópera quanto do romance. Um exemplo que discuto no livro é que, em “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, há a cena em que Bentinho vai ao teatro e assiste, provavelmente – há uma série de dados no texto que nos permite inferir isso –-, não a uma montagem de “Otelo”, mas da ópera inspirada na peça de Shakespeare. Ele se identifica com a personagem Otelo de forma evidentemente deturpada porque, no teatro lírico, descobre-se que Desdêmona é inocente, mas ele a compara com Capitu para considerá-la ainda mais culpada. É importante salientar que o meu livro teve como objetivo investir numa revisão da historiografia literária brasileira – que é escrita e revista o tempo todo – e, em particular, dar uma contribuição intersemiótica ou transmidial. A literatura não existe isolada no mundo, relacionando-se o tempo todo com outras linguagens artísticas, com a sociedade e o indivíduo. Isso tudo tem que ser incorporado à proposta de uma nova historiografia. O livro não tem o objetivo de mudar completamente o rumo das leituras, mas é uma pequena contribuição nesse sentido.
O livro faz uma comparação entre o compositor Richard Wagner, que criou uma ópera que considerava completa por se relacionar com todas as artes, e Machado de Assis, que teria feito algo semelhante em seus textos. O senhor pode explicar essa percepção e como Machado consegue explorar essa característica em uma obra literária?
MD: Essa é uma das hipóteses de semelhança que levanto no livro: em termos de evolução do gênero, o que Richard Wagner representa na história da ópera Machado de Assis representaria para o gênero romance na tradição brasileira. O primeiro aspecto é como Wagner privilegia, em diversos momentos, a criação de uma ambiência. Mais do que a descrição de uma ação, é a atmosfera do que está acontecendo. Esse é o dado substantivo de algumas das óperas finais. A ação, às vezes, já está dada, é muito sutil. O que importa é o clima criado. Machado faz exatamente a mesma coisa. Podemos pensar no “Memorial de Aires”, em que basicamente nada acontece, não há um grande acontecimento romanesco. Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, pouquíssima coisa acontece. São lembranças narradas do outro mundo, de um homem absolutamente medíocre, que não realizou nada de relevante, que simplesmente passou a vida defendendo e usufruindo o próprio lugar de privilégio na sociedade extremamente desigual que habitava. Então, a gente percebe como o enredo vai se tornando cada vez mais sutil, menos importante, tanto para Wagner quanto para Machado. É um primeiro ponto de contato entre os dois, cada vez mais preocupados com a criação desse clima. O segundo: Wagner criou em Bayreuth um teatro muito especial (Bayreuth Festspielhaus), com orquestra escondida, todos no escuro, com a ideia de que o espectador se sentisse inteiramente dentro daquela ação. É uma experiência imersiva que ele conseguiu justamente por meio desse apagamento da autoconsciência do espectador. Machado obtém esse mesmo resultado, mas por um mecanismo inverso. É a chamada autoconsciência narrativa de Machado: um narrador que, o tempo todo, nos lembra que aquilo é uma obra de ficção. Mas, essas duas estratégias acabam tendo um resultado muito semelhante de imersão, de relacionamento com essas personagens e com o enredo que é muito profundo e íntimo, que toca diretamente nas afeições da audiência e do leitor.
Há um trecho em que é explicada a existência de uma relação social que vai se construindo até que, no século XX, a ópera de certa forma influencia as marchinhas de Carnaval. Como é esse trajeto do teatro lírico até chegar ao Carnaval?
MD: Há uma visão muito comum, mas não exata, da ópera como uma linguagem elitista. Aproximadamente da Segunda Guerra Mundial em diante, há essa mudança de perfil, mas, até então, o teatro lírico era o que hoje em dia, para nós, é o cinema. É uma arte urbana, que não penetra no meio rural, mas atravessa todas as classes sociais nas cidades de grande e médio porte, porque o teatro de ópera reproduz a estratificação social. Há frisas e camarotes para a nobreza, o balcão para quem ainda é de classe alta e, depois, sucessivos espaços de visibilidade cada vez pior. O último anel, chamado poleiro, era um lugar onde as pessoas ficavam em pé para assistir. Os ingressos eram muito baratos. Então, ao reproduzir a divisão de classes da sociedade dentro de si, há espaço para todos os estratos. Além disso, a ópera não só ocupa o espaço do teatro, mas também é cantada nas ruas, transformada em reduções para piano e voz nas casas. Machado de Assis tem uma crônica em que comenta que os sinos da igreja tocavam melodias de óperas. Que coisa sacrílega, não? Portanto, havia uma penetração social muito maior. Há registros de presença de escravizados dentro do teatro. Embora seja horrível pensar que só estavam ali obrigados, acompanhando seus senhores, isso demonstra uma penetração, porque eles ouviam e também levavam para outros ambientes. O vínculo da ópera com a sociedade era muito mais transversal do que se tornou depois das guerras do século XX. Já a relação com o Carnaval é múltipla e, no livro, cito algumas hipóteses, mas que ainda têm de ser muito mais estudadas. O primeiro dado sobre isso se refere à prima donna Clara Delmastro. Como os teatros fechavam durante o Entrudo, um Carnaval mais rústico, ela decidiu alugar os figurinos de ópera e daí surgiu a ideia das fantasias. Segundo: a ópera forneceu alguns horizontes para pensar uma grande performance musical, um grande espetáculo, que depois seria levado para a rua, as escolas de samba, as marchinhas. Há uma série de elementos dessa espetacularização que será transportada. E, por fim, há dados musicais de como determinados elementos da fraseologia musical da ópera vão penetrar no conceito dessas marchinhas, que vão contando histórias, e há aí vários elementos propriamente musicais que vão ser tomados de empréstimo. Não dá para dizer que a marchinha de Carnaval descende da ópera, mas há uma série de elementos que convergem, e a ópera deu a sua pequena contribuição para a formação dessa nova modalidade de espetáculo que é o Carnaval – no primeiro momento, o carioca; depois, diversas formas e manifestações pelo Brasil inteiro.
O senhor argumenta que a ópera europeia teve maior impacto sobre a literatura do que sobre a formação do teatro lírico brasileiro. Por quê?
MD: É o ponto polêmico do livro, uma provocação aos músicos e musicólogos brasileiros. Alguns já ficaram indignados por eu dizer isso. É claro que analiso da perspectiva de um estudioso de literatura que, respeitosamente, se aproxima do repertório da ópera. Mas, na minha percepção, a produção operística brasileira, em termos de características de gênero formais, continua imitando a fórmula europeia. No romance isso não acontece. Há o romance europeu produzido entre os séculos XVI e XIX. Tomando como fonte essas obras, escritores brasileiros como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis não apenas atualizam a fórmula do romance europeu em território brasileiro: eles criam, em menos de cinquenta anos, uma fórmula do romance brasileiro. Ora, na minha percepção, acredito que isso não ocorreu na ópera no século XIX. Só na entrada do século XX foi se criando algo que podemos chamar de autenticamente brasileiro. Não é uma questão de ser feita por brasileiros ou no Brasil, porque pode emular um modelo que é exterior, e me parece que a ópera produzida por brasileiros, no Brasil do século XIX, ainda segue integralmente o modelo europeu. O principal caso é o de Carlos Gomes, um autor brasileiro, de Campinas. Ele compôs “O Guarani” na Itália, mas outras óperas que concebeu no Brasil seguem um modelo que é completamente europeu. O enredo pode se passar no Brasil, mas os traços formais, as convenções do gênero, seguem ipsis litteris as convenções europeias. Então, nesse sentido, demorou muito mais a criação de uma ópera brasileira como gênero do que de um romance brasileiro.
Mas por que a ópera teve essa influência na literatura brasileira no sentido de torná-la diferente da europeia?
MD: Podemos aventar diversas hipóteses. O romance é uma criação de um autor único, então, é um investimento baixo: só precisa de um escritor bem formado, papel, pena e tinta. Completamente diferente de uma ópera, que precisa de um teatro, uma orquestra, uma série de cantores, um empresário, figurino, cenário. A ópera é um investimento muito maior. Talvez por isso a literatura tenha se permitido ser experimental muito antes. Na ópera, como o investimento é muito alto, a tendência é o compositor seguir a fórmula que está fazendo sucesso. Se for um fracasso, vai ser grande. Já um escritor que escreveu um romance experimentando e não deu certo, aprende e no próximo faz diferente, ou investe na radicalidade, ou dá um passo para trás. É outra escala de investimento. A ópera é como o cinema no século XX. Para um grande estúdio de Hollywood fazer algo completamente diferente, isso consumirá muito dinheiro. Talvez seja por isso que a literatura tenha investido na reforma do modelo. O que são as “Memórias de um Sargento de Milícias”? Esse romance delicioso é absolutamente experimental. Várias influências já foram muito bem detectadas, por exemplo, como ele dialoga com a intertextualidade, mas é experimental, como diversos romances de José de Alencar. Se pensamos em “Lucíola”, claro que há uma tradição de uma Paris boêmia de “Madame Bovary”, “A Dama das Camélias”, mas o autor a atualiza, traz elementos muito brasileiros, enraíza a trama na realidade brasileira. Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro” ocorre a mesma coisa. Cada um deles faz uma experiência e leva o modelo de romance um pouquinho além. A ópera tem de ser um pouco mais conservadora, não pode fazer essas apostas tão altas.