Obra mostra como ação de indígenas moldou a Amazônia
“Sob os Tempos do Equinócio” apresenta pesquisa arqueológica que catalogou materiais de até 8 mil anos atrás e mostra como populações indígenas podem ensinar exploração sustentável às “tribos urbanas”
Em Edusp
Por Divulgação
“A compreensão de que o Brasil foi descoberto e de que povos originários não sabem trabalhar de forma sustentável na paisagem da Amazônia para gerar riqueza é fruto de uma visão colonialista e urbana.” A afirmação é do professor e arqueólogo Eduardo Góes Neves, autor do livro “Sob os Tempos do Equinócio: Oito Mil Anos de História na Amazônia Central”. O livro da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) apresenta análises de materiais colhidos em sítios arqueológicos que mostram que a região é não apenas um patrimônio natural mas também biocultural. Isso porque o autor estima que até 10 milhões de pessoas viviam na Amazônia há 8 mil anos, com diferentes línguas, culturas e formas de interagir com a floresta. Assim, por meio da agroecologia, essas populações indígenas não apenas aproveitaram as características naturais da região como modificaram de forma sustentável o hábitat. Para Neves, isso comprova que esses povos têm muito a ensinar sobre como conviver com a floresta e explorá-la de forma sustentável.
Eduardo Góes Neves é graduado em história pela Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado em antropologia pela Indiana University (Estados Unidos). Foi professor visitante na Harvard University (Estados Unidos), entre outras instituições. Também é professor titular do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, tendo assumido neste ano a direção do museu.
Explique como foi o processo de elaboração de sua pesquisa sobre os 8 mil anos de ocupação indígena na Amazônia central para orientar seu trabalho.
Eduardo Góes Neves: Quando comecei a trabalhar nessa região, em 1995, não sabíamos qual era a antiguidade da presença humana, indígena, ali. Sabíamos que havia sítios arqueológicos que poderiam ter 11 mil anos, mas era algo muito novo na época. Foi o nosso próprio trabalho, com 15 anos de pesquisa de campo, que nos permitiu conhecer vários sítios diferentes, cavar alguns deles e identificar esses contextos de datas mais antigas, que chegam a 8 mil anos atrás. Não era algo que sabíamos, e isso revela um pouco como funciona a arqueologia, uma disciplina que depende muito da pesquisa de campo, da produção de evidências. Temos regiões do Brasil que são muito mal conhecidas, e essa era uma delas.
Como funciona essa busca por evidências?
EGN: Essa região em que trabalhamos é muito perto de Manaus (AM). Hoje tem até uma ponte que atravessa o rio Negro que não existia no início da pesquisa. Meu colega, o arqueólogo americano Michael Heckenberger, identificou em 2004 um sítio arqueológico muito grande, com muitas cerâmicas. Conseguimos dinheiro e fomos para o primeiro trabalho de campo em 2005, um começo pouco controlado. Perguntávamos às pessoas onde havia a presença de cerâmica, nos deslocávamos de barco e de carro, olhávamos e identificávamos esses sítios. Achar um sítio não é difícil, mas é difícil descobrir o que fazer posteriormente, porque são dezenas de hectares de área. É algo que construímos ao longo do tempo. O que foi muito importante para essa pesquisa foi a contribuição da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que financiou até uma parte do livro. Foram inúmeras bolsas que a Fapesp concedeu – de graduação, de iniciação científica, de mestrado, de doutorado –, bolsas de pesquisa que nos permitiram trabalhar nesses 15 anos e trazer muita gente para trabalhar conosco. São sítios grandes e é preciso bastante gente para fazer os trabalhos de campo. Tivemos etapas com mais de 60 pessoas nas escavações. Os primeiros resultados foram interessantes e conseguimos formular problemas de pesquisa que nos permitiram pedir dinheiro. Fomos aprendendo muitas das estratégias de campo ao longo do tempo, porque são sítios muito complexos, com muitas ocupações e camadas diferentes, coisas com as quais não sabíamos como lidar no começo. É muito bacana também o processo de amadurecimento profissional da nossa equipe, tendo de trabalhar em contextos que não conhecíamos tão bem há 25 anos.
Como funciona a análise dos materiais encontrados?
EGN: A arqueologia está passando pelo momento mais interessante hoje em dia, porque é essencialmente uma ciência transdisciplinar. É uma ciência social, histórica, mas a matriz de informação é composta de objetos que foram produzidos por povos indígenas no passado e outros tipos de restos: comida, ossos de animais, sementes, o próprio solo e seus componentes químicos, os sepultamentos e ossos humanos, uma série de materiais que são superimportantes e constituem essa matriz, que forma a documentação arqueológica. Para estudar essas coisas, é preciso ter colegas com formação diversificada: especialistas em solo, em plantas, em fauna, em ossos humanos, em cerâmica, em objetos de pedra. Então, são equipes cada vez mais transdisciplinares. Costumo brincar que, se terminasse meu doutorado hoje, não conseguiria emprego, porque sou um generalista, uma espécie de dinossauro. Isso nos força a conversar com colegas cientistas de outras áreas do conhecimento o tempo todo. Cada vez mais a arqueologia será assim e é algo muito bacana, porque são poucas as áreas de conhecimento tão transdisciplinares logo de saída.
Quais pontos destaca sobre a história anterior à chegada dos europeus à América?
EGN: A primeira lição é que havia muitos indígenas no Brasil antes do “descobrimento”. O Brasil é um país com data de nascimento, em 22 de abril de 1500, o que é uma ideia totalmente errada. A arqueologia mostra que essas populações – é possível que houvesse 10 milhões de pessoas na Amazônia – modificaram a floresta ao longo do tempo e deixaram marcas visíveis dos seus modos de vida. Isso vale tanto nos sítios arqueológicos, nos objetos, nos aterros, no solo como também na própria paisagem. Precisamos pensar que a Amazônia não é apenas um patrimônio natural, mas biocultural também, e essa é a segunda lição. Os povos que viveram aqui construíram essas paisagens, que estamos destruindo agora, mas que ainda compõem o Brasil atual. A história da presença indígena aqui é fundamental para o conhecimento da nossa própria história. Outro ponto que menciono no livro é o conceito de pré-história, que é absolutamente equivocado, já que considera que a história começa com a chegada dos europeus. Na verdade, a arqueologia mostra que há uma história antiga no Brasil muito rica, diversificada e que merece ser conhecida e estudada.
Existe uma visão que coloca os povos amazônicos, ou populações indígenas, como mais atrasados em relação aos urbanos. O que pode falar sobre esse ponto de vista?
EGN: O que é atrasado? Porque, se olharmos para a história e a presença indígena na Amazônia, a arqueologia mostra que esses povos enriqueceram a floresta, por meio de estratégias que chamamos de agroecológicas. Hoje em dia estamos destruindo a Amazônia e já perdemos 20% dela nos últimos 30 anos. Isso gerou riqueza? Muito pouco. De todas as áreas destruídas, apenas 15% geram algum tipo de atividade produtiva; o restante é área degradada. É muito triste, porque achamos que somos mais avançados e não temos a menor ideia do que fazer com esse patrimônio biocultural. Os povos indígenas não; eles têm estratégias sofisticadíssimas que desenvolveram ao longo de milhares de anos. Essa nossa suposta superioridade nos colocou em uma situação muito difícil, porque o planeta está em uma baita crise socioambiental, com risco para o futuro da própria vida. Fomos nós mesmos que definimos que somos superiores, e somos muito suspeitos por criar essa régua à nossa própria imagem e semelhança. Está errado. Claro, não digo que temos de viver como os povos indígenas viviam dois ou seis mil anos atrás. A história sempre muda, mas existem lições importantes que podemos aprender com o passado e que podem nos ajudar a viver melhor no presente, como no caso da nossa perspectiva de viver na Amazônia, que é parte importantíssima do território brasileiro. Talvez a mais importante de todas.
Como o conhecimento sobre os povos que ali viveram contribui para a compreensão do que a Amazônia representa e oferece caminhos para uma exploração econômica sustentável e diferente do que se faz hoje?
EGN: A Amazônia é uma região que sofre um processo muito forte de colonialismo interno. Todos os países amazônicos têm capitais que ficam longe da Amazônia: a capital do Peru e a da Venezuela estão no litoral; a da Colômbia, a da Bolívia e a do Equador ficam no alto da cordilheira dos Andes; a do Brasil também está longe. A relação que os países sul-americanos têm com suas Amazônias é de olhar de fora para dentro, de pensar em soluções que são totalmente descoladas das condições culturais, políticas, ambientais e geográficas dessas regiões. São projetos mirabolantes que não dão certo. No Brasil, já tivemos escravidão indígena na época colonial, extração de borracha, e na ditadura militar era a ocupação pela ocupação, por defesa geopolítica. Nos governos do PT (Partido dos Trabalhadores) foram as usinas hidrelétricas, como a de Belo Monte, que foi uma catástrofe. E, agora, esse descalabro total, de garimpo ilegal, desmatamento. É sempre alguém de fora da Amazônia pensando em ocupá-la segundo uma lógica que não é regional e não dá certo. A grande lição vem da diversidade. Aprendemos com os povos indígenas que há uma diversidade cultural imensa, com centenas de línguas diferentes faladas, e a diversidade agrobiológica construída ao longo dos anos. Oferecemos para a Amazônia a substituição dessa diversidade por estratégias econômicas baseadas em poucas variáveis, como monocultura de soja, plantar capim para criar gado, e agora querem colocar cana-de-açúcar. Não faz o menor sentido do ponto de vista econômico, porque demanda um aporte muito grande de pesticidas, herbicidas e nutrientes para o solo. Do ponto de vista social é uma tragédia, porque expulsa as populações tradicionais. E do ponto de vista ambiental também é trágico, porque são atividades que não têm sustentabilidade. Se eu pudesse dar uma sugestão, seria pensar em estratégias que privilegiem a agroecologia, por exemplo, que utilizem o conhecimento local, que é muito sofisticado, para o cultivo de diferentes tipos de plantas, para criar cadeias produtivas que permitam fixar os moradores nessas regiões. Claro, é difícil dizer que precisam ficar lá se não se oferece escola para as crianças, sem atendimento médico adequado. Mas, certamente, a solução não pode seguir essa lógica predatória que vemos hoje.
Quais as conclusões sobre a importância da Amazônia hoje e as ações a serem tomadas?
EGN: Falo como cidadão e como professor universitário também. Estamos chegando perto de um ponto de virada. No Brasil, se Jair Bolsonaro for reeleito, será o fim da Amazônia que conhecemos. O leste da Amazônia, na região do Pará, mais emite do que absorve gases que causam o efeito estufa, o que já está documentado. Isso modifica uma série de funções que a floresta cumpre, com um processo de savanização muito grande. Há aumento de queimadas porque diminui a umidade, e, quanto mais queima, menor a umidade, criando um círculo vicioso que já ocorre na Amazônia e é estimulado hoje pelo governo federal. O que acontece em Roraima, na terra ianomâmi, com os garimpos ilegais é uma catástrofe: são 10 a 15 mil garimpeiros usando mercúrio e poluindo rios, com as doenças saindo de controle. O estado brasileiro nunca promoveu de forma tão perversa e agressiva o processo de destruição da Amazônia como nos últimos quatro anos. Falo isso como acadêmico, mas também como alguém que esteve duas vezes neste ano em campo na Amazônia, e vou para lá o tempo todo. Estive em Manaus (AM), dei aula em Belém (PA), fui para o campo em Rondônia, estive no Mato Grosso, tudo somente neste ano. Apesar de viver em São Paulo, posso dizer que, digamos, tenho lugar de fala sobre isso. Escrevi este livro pensando em tentar atingir um público além da academia. Ainda acredito, e talvez seja meio ingênuo, que o conhecimento tem um papel importante e pode nos ajudar a tomar decisões mais esclarecidas. A ideia do livro é que as pessoas possam conhecer um pouco mais esse passado e esse presente da Amazônia, para pensarmos a região de uma maneira mais interessante e menos destrutiva da que adotamos desde sempre – e que se acentuou muito nos últimos quatro anos.
Existe algum ponto extra que gostaria de expor?
EGN: É importante dizer que este livro e esta pesquisa só existiram por uma conjunção de fatores. O trabalho aconteceu em uma universidade pública que sempre me deu muita liberdade para trabalhar, por estar em um programa de pós-graduação que me permitiu a parceria de alunas e alunos e por meio da Fapesp, que é uma instituição pública de São Paulo de fomento à pesquisa. São condições que somente existem pelo contexto de financiamento público de pesquisa. A arqueologia não serve para nada no mundo prático, não cura ninguém, por exemplo. Mas é importante para um país ter conhecimento aprofundado sobre o próprio passado, e isso só pode acontecer com investimentos de longo prazo na realização de pesquisas básicas. Espero que este livro também sirva para mostrar a importância que tem o investimento público em pesquisa e ensino, itens fundamentais para que possamos construir um país mais justo. Que mais iniciativas como essa possam se reproduzir, por exemplo, nos estados da Amazônia brasileira, que conta com arqueólogas e arqueólogos maravilhosos, mas que sofrem muito pela falta de apoio e perseguição à pesquisa neste momento.