Ironia como chave para o estudo da obra de Fernando Pessoa
Análise multifacetada de “Fernando Pessoa Ironista” explora heterônimos e histórico editorial de Pessoa para examinar o lado irônico de sua obra
Em Edusp
Por Divulgação
O rico legado deixado por Fernando Pessoa para a literatura em língua portuguesa ainda hoje, quase noventa anos após sua morte, motiva intensos debates. Mesmo com incontáveis análises e estudos já produzidos sobre o autor, seus textos continuam inspirando novas abordagens. Esse é o caso de “Fernando Pessoa Ironista”, lançado recentemente pela Edusp.
No livro, Caio Gagliardi se aprofunda nos elementos irônicos que Pessoa explorou ao longo de sua carreira, incluindo os trabalhos assinados por seus heterônimos, como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Mais do que apenas nomes fictícios, essas identidades possuíam ideários e estilos próprios, às vezes até dados biográficos, fazendo parte de um jogo do autor com sua imagem pública.
Ao analisar esses heterônimos, Gagliardi trata de uma faceta pouco explorada da criação pessoana: o gesto editorial, ou seja, a escolha de perspectivas e da persona poética de acordo com a plataforma em que sua obra seria publicada. Além disso, ele observa que certos textos de Pessoa, se lidos de forma literal, ficam incompletos, de modo que a consideração do aspecto irônico dessas ideias seria fundamental para compreender melhor as intenções do escritor.
“Fernando Pessoa Ironista” é resultado de um longo trabalho e de intensos estudos sobre o autor português. Na USP, Gagliardi é coordenador do grupo Estudos Pessoanos e também ministra cursos, um na graduação e outro na pós-graduação, nos quais aborda os aspectos irônicos da obra de Pessoa.
Na entrevista a seguir, o estudioso reflete sobre a prática ironista de Fernando Pessoa, não só examinando a forma e o conteúdo de sua obra como também a multiplicidade de heterônimos e de vozes poéticas como expressões de um olhar distanciado para a realidade. Na análise de Gagliardi, Pessoa usa suas “máscaras autorais” para transformar sensações e emoções em ideias, revelando novas dimensões de um dos autores mais célebres da nossa língua.
Como e quando surgiu o interesse em abordar a ironia na obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos?
Caio Gagliardi: Embora o caráter irônico da obra pessoana seja uma de suas características centrais, faltava à sua fortuna crítica uma leitura sistemática a seu respeito. Os seus principais intérpretes, entre os quais Jorge de Sena e Eduardo Lourenço, embora não a tivessem ignorado, abordaram a ironia com pinceladas rápidas, abrindo caminho para uma leitura mais detida, que, no entanto, não havia sido realizada até o momento. Há muitos anos eu trato da ironia pessoana em dois cursos que ministro na USP, um na graduação e outro, com uma análise mais minuciosa, na pós-graduação. A prática da sala de aula sempre representou para mim a oportunidade de aprender mais sobre determinado assunto, beneficiando-se das minhas pesquisas e, concomitantemente, alimentando-as.
Como foi o processo de pesquisa e de concepção do livro?
CG: A pesquisa relacionada ao livro ocorreu de forma gradativa e paralelamente às minhas outras duas linhas de pesquisa ligadas aos programas de pós-graduação em que atuo. Eu coordeno na USP o grupo Estudos Pessoanos, que me possibilita manter um diálogo constante a esse respeito. No caso de “Fernando Pessoa Ironista”, já há alguns anos eu tinha em mente um livro ao qual fui dando vida gradativamente. Assim, esse livro não é uma reunião de ensaios sobre um tema, porque ele foi efetivamente concebido como uma continuidade coerente. No entanto, a prática da pesquisa universitária, mais do que exigir, nos possibilita dar vazão a nossas pesquisas e colher contribuições que nos ajudam a acertar os rumos e lapidar os contornos do trabalho que estamos realizando. Desse modo, as versões iniciais de alguns capítulos saíram em revistas especializadas, antes de sua redação final para o livro. O importante para mim era conceber um livro que tivesse um propósito claro e não fosse um manual geral sem um ponto de fuga.
Na sua opinião, o desenvolvimento de heterônimos é uma prática literária por si só irônica, como expressão de ideias e pontos de vista possivelmente alheios ou até contraditórios em relação ao autor ortônimo?
CG: Sem dúvida. Pessoa explica, num texto em que critica a mentalidade provinciana portuguesa, que a ironia está relacionada à capacidade de olhar distanciadamente para a realidade, o que os ingleses chamam de detachment. Esse passo atrás foi uma condição essencial para que o escritor pudesse analisar racionalmente a si mesmo e o que o rodeou. Assim, ao sentir algo, Pessoa era capaz de imediatamente converter a sensação ou a emoção em uma ideia, em uma fórmula verbal. Um de seus versos mais axiomáticos sintetiza do seguinte modo esse processo de intelectualização das emoções: “O que em mim sente ’stá pensando”. A passagem mais conhecida a esse respeito é provavelmente a primeira quadra de “Autopsicografia”, que define a escrita poética como a capacidade de fingir a dor que deveras se sente. Pessoa foi capaz de levar a tal grau essa deliberação do pensamento que produziu algumas das maiores obras da literatura moderna segundo pontos de vista alheios ao seu, isto é, valendo-se de máscaras autorais. A ideia da heteronímia não seria tão fascinante se não fosse alimentada pelas obras-primas de seus autores fictícios. Daí, no livro, eu propor o conceito de “heteronia”, um termo que funde os dois conceitos, os quais, a meu ver, são efetivamente indissociáveis na obra de Pessoa.
Você identificou nos seus estudos uma especial relevância das práticas editoriais de Pessoa, incluindo seus heterônimos, para a compreensão de sua obra?
CG: Pessoa concebeu as suas obras como um jogador. A sua inteligência afiada se alimentou de embates dissimulados que ele travou com os editoriais e os nomes das publicações que estamparam seus poemas. Isso significa que, quando lemos a sua poesia em uma de suas edições póstumas, os textos ganham um sentido de conjunto, decerto, mas perdem, por outro lado, uma faceta que, até o momento, não tinha sido sublinhada pelos seus críticos: o gesto editorial pessoano. Um exemplo: guiado pela provocação irreverente, Pessoa estreia como poeta, em sua língua, numa revista modernista intitulada “A Renascença”, na qual opta por tratar não do futuro ou de auroras, mas do seu contrário: a infância perdida. Valendo-se de um tom inesperadamente nostálgico, ele estampa, já no título do poema, um substantivo destoante do nome da revista: “Impressões do Crepúsculo”. Esse jogo não é episódico em suas publicações em vida. Por esse motivo, analiso muitos casos no livro, incluindo alguns poemas célebres. Em que pese se tratar de textos alimentados por uma copiosa tradição crítica, procurei oferecer, por meio da análise de seu gesto editorial, efeitos de sentido complementares para as suas leituras.
Como você descreveria a relação de Pessoa com a revista “Presença” e o que isso diz sobre a personalidade e a obra do autor?
CG: A relação de Pessoa com a “Presença” foi temperada por sua irreverência discreta. Se Pessoa não foi um autor presencista, a “Presença” (uma revista que perdurou por treze anos e se estabeleceu como órgão principal do segundo modernismo português) foi uma publicação, em ampla medida, pessoana. Para comprovar essa afirmação, basta constatar que ele foi o autor que mais publicou na revista com exceção apenas de seus próprios editores, como também foi o autor a respeito de quem mais se falou, além de ter sido o único a quem a “Presença” dedicou um número especial. Apesar disso, o ideário presencista, com sua defesa de valores românticos como a “sinceridade” e a “ingenuidade”, é um retrocesso se comparado à poética do fingimento. No primeiro texto de Pessoa publicado na revista, chamado “Ambiente”, Álvaro de Campos defende valores contrários aos de seu manifesto de abertura, “Literatura Viva”, redigido por José Régio. Segundo Campos, nenhuma época transmite a outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade. Se, para Régio, fingir é ser artificial e desonesto, para Campos, fingir é conhecer-se.
Em uma passagem do livro, você menciona os artigos que Fernando Pessoa, ainda jovem, publicou na revista “A Águia”, que são textos que contêm provocação, autopromoção e reflexão sobre a literatura portuguesa. Como foi a recepção desses artigos na época e como você os avalia hoje?
CG: Podemos considerar que esses textos foram mal compreendidos em sua época e que assim continuarão sendo se forem lidos literalmente. O etos autoral pessoano é o do homem de gênio. A maneira como ele pinta “D. Sebastião, Rei de Portugal”, um dos ungidos para redimir seu país, “Louco, sim, louco, porque quis grandeza”, em oposição ao homem em sua mediocridade sadia, “cadáver adiado que procria”, serve-lhe como definição. A interpretação literal de parte significativa da prosa de intervenção produzida por Pessoa não é suficiente para desvendar o seu sentido. Embasados em uma argumentação cortante e voltados para o incitamento, os artigos de estreia publicados em 1912 na revista “A Águia” foram lançados sobre o ambiente cultural lisboeta do início do século XX como atos públicos. É preciso considerar, ao ler esses textos, que, assim como ocorre com o teatro, a arte da polêmica ou a de alcance messiânico não se esgota no texto. Com o vaticínio de um “supra-Camões”, Pessoa começava a encenar a sua cena pública.
“O Interregno: Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal” já era um material polêmico na época de sua publicação, e hoje pode ser considerado o mais controverso de toda a carreira de Pessoa. Em que momento surgiu a ideia de reexaminar esse texto como parte do seu livro?
CG: Em geral, a ideia de abordar determinado texto surge, para mim, de três constatações associadas: 1. a de que aquele texto tem importância no escopo da obra da qual faz parte; 2. a de que se trata de um texto mal interpretado ou com lacunas de compreensão; 3. a de que eu tenho aparentemente algo a acrescentar a seu respeito. Sem esses três fatores associados, eu dificilmente me sinto instigado a escrever sobre o que quer que seja. Nesse caso específico, aquele que redige uma suposta defesa da ditadura militar em Portugal (subtítulo acrescentado, aliás, na segunda versão do texto, e não por Pessoa) é uma persona literária extravagante. O famigerado “Interregno” integra-se ao messianismo irônico de Pessoa, muito próximo no tom e na argumentação à sequência “A Nova Poesia Portuguesa”, veiculada em “A Águia”. Muitos desses aguilhões lançados pelo escritor apresentam um caráter autopromocional. Em última análise, os seus ensaios de intervenção sociopolítica e cultural apresentam um sentido comum, que encontra uma síntese perfeita na seguinte declaração: “Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade”. Mas, nesse caso, vale a pena olhar com mais atenção para o contexto em que se inserem esse e outros textos políticos de Pessoa, para que não recaiamos em anacronismo. Desde a queda da Monarquia e a instauração da República, em 1910, o tempo político de Pessoa foi marcado por grande agitação administrativa e graves crises sociais, incluindo o assassinato do presidente Sidónio Pais (1872-1918), ao qual Pessoa dedicou um longo poema, e o golpe militar em 1926. Pessoa foi um escritor anterior à Guerra Civil Espanhola, que se deu entre 1936 e1939, aos movimentos de libertação das colônias portuguesas na África (Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, ocorridos entre 1961 e 1974), à notícia do sinistro propósito dos campos de concentração nazistas (Dachau, o primeiro deles, foi construído em 1933) e, é claro, à Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945. Feitas essas considerações, e tendo em mente a quantidade de textos antissalazaristas que Pessoa elaborou a partir de 1933, os quais anunciam uma nova orientação política em sua obra, é legítimo conjecturarmos que, se tivesse sido produzida à luz das transformações que Portugal e o mundo sofreram ao longo dos cinco anos seguintes à morte do escritor, seria ainda mais nítida a relativização de seu individualismo patente.
Como foi o processo de idealizar, desenvolver e escrever o epílogo do livro?
CG: Foi um processo lento e gradativo de seleção, recolha e anotação. O epílogo do livro é pouco convencional, na medida em que é composto de três ensaios: o primeiro dedicado a Alberto Caeiro, o segundo, a Ricardo Reis e o final, a Álvaro de Campos. Nesse caso, conforme eu explico preliminarmente, não sou o único autor desses ensaios, uma vez que eles testemunham as leituras que um amigo íntimo, o professor Antônio Nogueira, fez em diferentes momentos de sua vida. Eu tinha a obrigação de relatar algumas das descobertas de Antônio a respeito dessa obra tão rica. Depois de ter publicado o livro, eu continuo tendo o privilégio de estabelecer com essa grande pessoa uma interlocução intelectual de que nem sempre posso desfrutar na universidade. Eu gostaria de pensar que esse estudo faz jus às ideias de Antônio. Não por acaso, o livro é dedicado a ele.