Do coloquial ao erudito, todo o escopo helenístico se reflete em Catulo
Segunda edição de “O Livro de Catulo” traz traduções atualizadas e uma nova perspectiva sobre a obra do poeta romano
Em Edusp
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Exposto a traduções de Catulo no segundo ano de seu bacharelado em latim, João Angelo Oliva Neto se interessou rapidamente pelo estilo despojado e “moderno” do poeta, que muito se diferenciava da imagem que tinha sobre os antigos.
Assim nasceu a ideia de escrever o mestrado sobre Gaius Valerius Catullus que ocasionalmente se tornou “O Livro de Catulo”, publicado pela Edusp em 1996. Trata-se de uma obra extensa contendo traduções em versos métricos de todos os poemas de Catulo, com o uso da corrente de tradução popularizada pelos irmãos Campos, o make it new.
Anos depois, Angelo revisita seu trabalho e decide transformá-lo, adaptando suas traduções com base em uma visão amadurecida sobre o papel do tradutor. Ele abandona o make it new e opta por uma tradução arqueológica que permite olhar o antigo como avançado em seu tempo, sem intromissões, enfatizando a novidade representada pela tecnologia da época em que o poeta viveu.
A segunda edição de “O Livro de Catulo” permite contato com as novas traduções feitas por João Angelo e traz dezenas de páginas de interpretações feitas por outros autores, com ideias diferentes sobre como traduzir, presenteando o leitor com uma ampla visão sobre o poeta e celebrando a pluralidade do ofício de tradutor. O objetivo não é promover uma competição, mas apresentar pontos de vista que coexistem e se complementam.
Quais foram os cuidados que você tomou para manter o estilo de Catulo em uma tradução em verso?
João Angelo: Eu tomei duas decisões. A primeira foi traduzir em versos métricos. Nada impede que alguém traduza em versos livres, quase toda a poesia contemporânea desde o modernismo é em verso livre, mas Catulo é métrico, os versos são métricos. Então optei por traduzir dessa forma e manter o que nós chamamos de elocução. É claro que a coloquialidade da minha produção se dá, por exemplo, pelo acolhimento de expressões da fala comum. Utilizei expressões fixas da língua portuguesa, da música popular brasileira, e coloquei na tradução de Catulo para alcançar o objetivo de ser métrico e coloquial. A coloquialidade se baseia na incorporação de expressões do português que podem também estar presentes na música brasileira. Conforme fui estudando, descobri que Catulo tem uma seção de poemas que não são coloquiais; esses poemas eu traduzi não coloquialmente, utilizando expressões cultas e elevadas da língua portuguesa que eu tirei de autores cultos e elevados da literatura portuguesa e brasileira. Foi isso que eu fiz para manter o que chamamos de registro ou elocução. Eu tentei manter o registro elevado ou baixo de acordo com o poema em questão.
Na primeira edição você seguiu as ideias dos irmãos Campos e se utilizou do make it new, uma política de tradução que abandonou na segunda edição devido a críticas ao anacronismo. Como você decidiu onde adaptar e onde não adaptar de forma a evitar esse anacronismo?
JA: É fato que na primeira edição, publicada em 1996, eu fui anacrônico. É algo que menciono na introdução da segunda edição. Incorporei dados da contemporaneidade, como papel em vez de papiro, cadernos em vez de tabuinhas, e traí o sentido original. Fui criticado por isso com muita elegância por um dos meus professores de pós-graduação, o Pedro Paulo Funari. Ele disse que não podia usar minha tradução para documentar algum dado arqueológico sobre Catulo por ter alterado o sentido original. O que eu fiz na primeira edição foi escolher utilizar o make it new. Essa escolha se refere a uma política poética que foi adotada aqui no Brasil pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e pelo concretismo. Na segunda edição eu abandonei essa ideia, as traduções não são iguais às da primeira. Eu deliberadamente traduzi papiro por papiro, tabuinhas por tabuinhas. Não por querer ser mais fiel, mas sobretudo para manter a materialidade do objeto que Catulo manipula e menciona, que era importante para ele. Eu decidi deixar o poeta falar e me colocar em meu papel de tradutor. E não decidi isso por optar por uma tradução conservadora, mas sim arqueológica. Posteriormente, chamei esses poemas que falam do objeto livro de bibliopoemas. Catulo fazia esse tipo de poesia com objetos do tempo dele; então, não vou substituir o livro do tempo dele pelo livro do meu tempo, não é a mesma tecnologia, não tem o mesmo valor. Eu decidi ser tradutor no sentido mais estrito, dizer em português o que ele disse em latim. Eu sei que aqueles que adoram o make it new podem considerar que isso representa um recuo, um conservadorismo de minha parte; não faço querendo agradar, mas por acreditar que devo fazer. Por isso gosto de dizer que essa segunda edição é um outro livro, muitos dos poemas estão diferentes. Se alguém alegar que ter comprado a primeira edição é motivo para não comprar a segunda, esse alguém pode tirar o cavalo da chuva. O curioso é que são versões diferentes feitas pela mesma pessoa, mas eu não sou o que eu era há trinta anos, não tenho as mesmas opiniões a respeito de poesia. Eu até faço no prólogo à segunda edição a ressalva de que existe uma concepção histórica que é olhar para o passado e não ver como passado. É lembrar que o passado no tempo dele foi presente. A gente tem uma visão ingênua dos antigos, você vê um carro antigo e parece romântico. Mas, no tempo deles, aquilo era muitíssimo moderno. O papiro era uma tecnologia, o livro antigo era uma tecnologia importante, era algo extraordinário. É como se o livro fosse o equivalente ao computador de hoje. Então, Catulo fala de uma coisa que é muito moderna. Meu papel como tradutor é lembrar que isso foi moderno e não neutralizar e matar o papiro, matar a tabuinha de cera. Eu quero preservar a importância dessa tecnologia, que fez que Catulo escrevesse sobre ela. Quero que o leitor olhe para isso e saiba que, embora tenha acabado, era avançado naquele tempo. Quero traduzir o avanço e não a moda. As pessoas parecem pensar que Catulo já nasceu clássico. Ele era tão contemporâneo no tempo dele quanto nós somos agora, e eu quero traduzir a contemporaneidade. O equívoco do make it new é achar que está sendo moderno só porque colocou a coisa moderna, quando, na verdade, está se intrometendo onde não devia. Catulo gostava de ser moderno e nós neutralizamos a novidade dele ao traduzir papiro como papel. Essas são posições diferentes quanto à tradução, mas que coexistem.
E o seu livro traz também muitas traduções de diferentes tradutores, que acabam complementando umas às outras, apresentando algo que os outros tradutores talvez não tenham evidenciado.
JA: Exato! É um livro plural. Eu sou um tradutor no meio de outros e o livro reflete isso. É uma obra bem extensa, 904 páginas, e cerca de cem delas são dedicadas a outros tradutores. Se Catulo soubesse que foi produzido um livro deste tamanho sobre seus poemas, ele rolaria no túmulo. Paciência, o que eu quero mostrar é que outras pessoas se debruçaram sobre Catulo desde o século XVIII e que ele tem muitos tradutores; eu sou mais um. Acho que é uma concorrência por acréscimo e não por exclusão. Há traduções muito concretistas que incluí na edição e admiro muito. Utilizei inclusive as traduções que adotam um ponto de vista diferente do meu. Há um jovem tradutor chamado Rodrigo Bravo que fez a tradução de um poema muito famoso de Catulo em que ele diz que “odeia e ama ao mesmo tempo”, ele sabe o que sente e se crucifica. Ele se crucifica porque a cruz de fato era uma pena de morte, a cadeira elétrica dos romanos. Então ele falou isto: “Eu morro como quem morre na cruz”. E, sendo um poema de dois versos, esse tradutor pegou um verso e deixou na vertical e o outro na horizontal, formando uma cruz. Eu achei genial, é uma perspectiva bem diferente da minha. O livro já estava fechado e eu pedi à Ana Novais, a editora, que colocasse essa tradução. Fiz o máximo que pude para mostrar essas diferentes traduções.
Um poeta como Catulo exige muito do tradutor, não é só uma questão de traduzir diretamente, mas também de traduzir o contexto. Em alguns dos poemas de ataque, ele usa ofensas bem chulas que têm significados diferentes para os antigos e para nós. Alguns tradutores até censuraram palavras nesses poemas. Quais foram as dificuldades que você enfrentou para traduzir a cultura e o contexto envolvidos no que é dito?
JA: O primeiro ponto que acho importante, e eu abordo isso na introdução do livro, é sobre coisas que havia na Antiguidade e que não há hoje. No caso, há poemas em que Catulo adota a agressão, poemas do gênero iâmbico, que é um gênero de agressão, e a há poemas que não são iâmbicos, são líricos. Nos iâmbicos ele adota uma gramática da agressão, a ofensa é muito bem estabelecida, com parâmetros. Por exemplo, há poemas elevados e positivos que são homoafetivos. Esses poemas costumam ser sobre a relação entre um adulto e um adolescente, é a poesia pederástica típica da cultura da época. Nesses casos, o adolescente pode ocupar a posição do amante passivo – passivo no sentido do ato de penetração mesmo. Agora, se essa posição é ocupada por um adulto, ela se torna ofensiva e degradante, ele passa a ser visto como menos do que um cidadão por se colocar à mercê do outro. A posição ativa ali significa uma posição de poder. É por isso que Catulo se utiliza disso para ofender. Nós ainda temos um pouco dessas ofensas hoje, mas, com a ampliação de nossos valores, isso muda. A posição passiva em uma relação amorosa do mesmo sexo não é mais degradante. Os valores de Catulo e os nossos são diferentes; como estudioso, quero entender onde Catulo opera, os valores dele. É por isso que, se a pessoa lê ingenuamente os poemas, pode achar que é agressão gratuita, como se Catulo tivesse perdido a compostura quando, na verdade, ele é absolutamente composto. É uma agressão consciente. Os antigos davam lugar literário e poético para a agressão verbal nesse gênero iâmbico da poesia. Eles tinham um gênero para falar “eu amo” e um para falar “eu odeio”. Na literatura portuguesa, tínhamos as cantigas de escárnio, de maldizer; hoje isso não está mais na moda. A nossa ética é cheia de pruridos, por vezes exagerados. Então o leitor precisa entender que é um desafeto deliberado, modulado e regrado pelo que chamo de uma gramática da agressão, baseada nas três formas de penetração: oral, anal e vaginal. Ainda mantemos um pouco disso hoje, mas não tudo. Como tradutor e estudioso de literatura latina, gostaria que as pessoas não julgassem a agressão com valores conflitantes, que entendessem que existia um lugar literário para isso; é como se fosse uma atitude política, quase uma lei de talião. Existe um poeta português muito bom que foi professor da Unesp e traduziu o poema 16 do Catulo, um poema muito obsceno, em que ele fala: “Eu vou penetrar e vou enrabar”, e esse tradutor deixou essa parte em latim. Ele não traduziu esse verso. A dimensão moralista é tão grande que ele não compreende que aquilo é literatura, que aquilo é antigo. Ele não consegue verbalizar como tradutor aquilo que Catulo falou como autor. Eu acho que no limite ele talvez pensasse que Catulo não devesse escrever aquilo, ajuizando moralmente. Felizmente, hoje nossos valores são mais apropriados para entender esse tipo de coisa, eu posso ir à universidade e ler esse poema, para adultos, exatamente como ele é.
Qual a importância de Catulo para os dias de hoje? Qual a influência da poesia helenística sobre a poesia contemporânea?
JA: Até alguns anos atrás, a cultura helenística era depreciada na própria universidade. Era considerada decadente segundo um conceito de literatura que é biologista, que defende que desde o período clássico a poesia decaiu. Esse seria o auge e o que veio depois do auge seria a catástrofe. T. S. Eliot, um poeta culto e renomado, reproduziu no tempo dele o procedimento helenístico; ele lia poetas helenísticos e a poesia que praticava era alimentada por esse período. Isso foi reconhecido pelo teórico alemão Ernst Robert Curtius, que escreveu um livro importante sobre a Idade Média latina, “Literatura Europeia e Idade Média Latina”, livro, aliás, publicado pela Edusp. Curtius em outro livro, “Ensaio Sobre a Literatura Europeia”, afirmou que Eliot, o campeão da poesia moderna, é um poeta helenístico. Então eu respondo a você: como Catulo colabora? Qual a importância de traduzir Catulo hoje? Justamente trazer a possibilidade de que poetas que criam em português acolham a sofisticação dos poetas helenísticos. Catulo é um poeta helenístico e latino, um poeta que imita Calímaco, que é o campeão dos poetas helenísticos. Assim, se a minha tradução lograr algum valor e puder chegar aos ouvidos de poetas originais brasileiros, eu gostaria que isso alimentasse por analogia uma literatura contemporânea que seja igualmente sofisticada. A poesia moderna dá a falsa ilusão de ser simples, mas essa simplicidade é um ponto de chegada e não de partida. Há muita poesia contemporânea de má qualidade porque esses poetas se iludiram achando que um poema como os de Bandeira, em verso livre, parece “fácil”. E a poesia não é fácil, ela é muito difícil, complexa, complicada, justamente porque ela não é figurativa. A poesia é formalidade, mesmo que não seja métrica; ela é culta, é um ato de erudição. Então, a leitura dos poemas antigos, como os de Horácio e Catulo, ajuda a pessoa a entender que a composição é complexa. A poesia não é difícil de ler, mas é difícil de fazer.
Entre as duas edições do livro houve um interesse renovado nas universidades pelos estudos do período helenístico. A que você atribui essa diferença de percepção?
JA: Acredito que essa mudança se deve àquilo que move o mundo: as novas gerações. Hoje eu sou tecnicamente idoso, tenho 67 anos. Mas eu fui jovem um dia. É inevitável que as novas gerações percebam valor em coisas nas quais as gerações antigas não perceberam. O fato é que os estudos helenísticos se desenvolveram nas universidades em todo o mundo. Há dois fatores: um é esse, que é natural; o segundo é a questão teórica. O que se percebeu é que o ajuizamento da literatura, a crítica baseada em conceitos, digamos, “biologísticos”, como apogeu e decadência, não procede. Os autores modernos já falam isso, o Eliot falava isso. As literaturas não são melhores ou piores, elas são diferentes. A poesia helenística não é inferior à poesia clássica, ela é diferente e leva em conta outros critérios, realidades e condições. As novas gerações começaram a avaliar a literatura com um critério que não era mais biologista, mas que propunha olhar a natureza do objeto. Olhar, analisar, e não julgar. As novas gerações não acolheram a perspectiva de que essa poesia era inferior por vir depois do apogeu, mas observaram o que a poesia helenística tem e o que ela quer ser. Não o que ela nunca quis ser, a literatura helenística nunca quis ser clássica. Quando as novas gerações fizeram isso, perceberam uma grande literatura.
Catulo é hoje um dos poetas da Antiguidade que mais passou por traduções. Para você, o que gera tanto interesse na obra dele e o diferencia de outros poetas de seu período?
JA: Eu acho que é o mesmo que chamou minha atenção: a linguagem dele. É como se Catulo, sendo antigo, não tivesse aqueles conceitos que nos parecem antigos. Inercialmente entendemos o antigo como algo grave, severo. Então eu acho que há uma expectativa de que o poeta antigo seja grave, necessariamente elevado, e o que eu vi foi um poeta coloquial, usando linguagem anacrônica, “moderno”. Não à toa os românticos adoravam Catulo. Catulo é jovial, Horácio é grave. Há poemas de Horácio em que ele não é grave, mas é uma ideia que as pessoas têm dele. Quando lemos Catulo, ele parece falar conosco diretamente. É a linguagem dele, e essa linguagem não é um resultado do temperamento do Catulo, mas de um constructo poético, um personagem que ele monta. Ele inventou uma persona poética e confundiu todo mundo ao dar a ela o nome de Catulo, o nome dele. Essa persona é muito próxima de nós, então as pessoas se fascinam com Catulo, elas conversam com Catulo. E conversar com Catulo é lê-lo e traduzi-lo. Mas eu quero lembrar que Catulo também tem gravidade. Ele é multifacetado. Acho que é isso que ele tem e os outros não. Nos poemas longos, não se está mais falando sobre aquele Catulo coloquial, ele é deliberadamente erudito. A linguagem muda. Não nego que o que é mais característico dele é esse Catulo mais franco e coloquial, mas isso não é tudo. São oito poemas longos. Eu vejo que o interesse todo reside no livro e reside no autor, ele é o objeto e até o leitor é coadjuvante. O protagonista é Catulo.