Coleções da Edusp ampliam debate sobre a segurança pública e os direitos humanos

O professor e sociólogo Sérgio Adorno afirma que as coleções trazem exemplos práticos sobre a relação da polícia com a sociedade e as estruturas de poder  

Em Edusp

Por Divulgação

Duas coleções com algumas das obras mais reeditadas da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), a Polícia e Sociedade e a Série Direitos Humanos, contribuem significativamente para o debate, a formação e a pesquisa em segurança pública no Brasil. São livros que abordam temas como valorização da profissão de policial, tortura, administração institucional e outros assuntos constantemente discutidos no noticiário nacional.

Coordenador científico desde 1990 do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP), parceiro da Edusp nas coleções, o professor e sociólogo Sérgio Adorno afirma que ambas reúnem livros que não tratam de generalidades, mas de especificidades e exemplos práticos da relação da polícia com a sociedade e da defesa dos direitos humanos. São estudos analíticos e comparativos que facilitam a compreensão das estruturas de poder e da democracia.

Adorno é doutor em sociologia pela USP, com pós-doutorado no Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales (CESDIP), na França. É professor titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), já presidiu a Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação e atua principalmente nos temas violência, direitos humanos, criminalidade urbana, controle social e conflitos sociais.

Leia a entrevista a seguir.

– Como e por que as coleções foram pensadas?
Sérgio Adorno: No fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, a literatura brasileira sobre a polícia e sua relação com a sociedade era muito escassa. Havia uma preocupação pela incompatibilidade entre as tradições autoritárias, que ainda estão presentes na polícia brasileira e naquele momento eram muito mais visíveis, e a ausência de uma discussão sobre os modelos institucionais compatíveis com uma sociedade democrática. Era um período de transição e consolidação da democracia e a questão policial permanecia presa aos modelos do passado. Hoje há um acúmulo de estudos sobre a organização da polícia no Brasil, mas há quase três décadas poucos dominavam o inglês ou o francês para ler essa literatura na língua original. A ideia foi traduzir dez livros de referência, produzidos por pesquisadores reconhecidos e acessíveis ao público acadêmico e não acadêmico brasileiro, para estimular pesquisas e qualificar o debate e a formação dos policiais. A ideia foi originalmente da psicóloga e professora Nancy Cardia, que é uma das coordenadoras do projeto. Ela ajudou a selecionar as referências, conseguimos um apoio da Fundação Ford e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e, com a orientação acadêmica do professor Paulo Sérgio Pinheiro, concretizamos esse projeto inovador com a Edusp. Tanto que é bibliografia essencial nos concursos de policiais militares, civis e na esfera federal. Procurou-se diversificar os temas tratados e juntar dois tipos de pesquisadores, que são historiadores, sociólogos e outros cientistas políticos de um lado e, do outro, policiais que se transformaram em pesquisadores e conseguem avaliar por dentro a instituição, seus impasses e desafios. Claro, são textos produzidos entre os anos 1970 e 1990, originalmente na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá, mas são referências porque o que é fundamental para entender a organização da polícia em sociedades democráticas está lá.

Como a coleção “Polícia e Sociedade” contribui para a formação de agentes de segurança pública?
SA: Contribui porque trata de temas muito específicos, como profissionalização, inteligência policial, desafios para lidar com crime organizado e terrorismo, estruturas burocráticas mais ágeis, formas de avaliação do trabalho policial, remuneração e condições de trabalho, uso da força e outros. É uma espécie de catálogo do que é essencial na formação, e muitos  dos dez volumes são comparativos. Há um sobre a polícia de seis cidades dos EUA, outro que compara polícias de países da Europa, da Ásia e também da Austrália, para se ter uma visão globalizada e entender que alguns problemas não são exclusivos do Brasil. Por isso diria que a coleção é de sucesso, já reeditada, o que é algo raro quando os livros tratam de temas que não são do interesse da maioria da população.

Há pesquisas que apontam que a formação policial privilegia a área jurídica. Quais outros temas deveriam ser primordiais?
SA: O universo jurídico é importante, para conhecer a lei, os limites e os direitos, mas não é suficiente. É preciso ter informações técnicas básicas, a sociologia e a antropologia. Não estudar teorias, mas para que o policial entenda que atua em um ambiente de extremas desigualdades, em que brancos e negros precisam ter os mesmos direitos à preservação da vida. Para que saiba que a sociedade brasileira é extremamente hierarquizada, com grande concentração de poder, e que não pode se colocar como representante de um poder, com uma atitude autoritária. É importante que tenha sociologia para que entenda a composição racial e étnica da sociedade brasileira, a distribuição de classes, a relação entre bairros e policiamento e como lidar com a tradição de zonas de grande concentração de crimes. O crime está distribuído na sociedade e, se analisássemos, veríamos que os mais pobres e os negros são os que menos cometem crimes, comparativamente ao conjunto da população. Na verdade, há um processo de criminalização e o foco da organização acaba nos setores mais pauperizados da população, nos quais uma grande concentração de jovens negros são alvos da ação policial violenta, com desfechos fatais. Isso está comprovado nas estatísticas. O NEV/USP produziu há alguns anos um estudo sobre a formação de policiais civis e militares e havia um curso de sociologia, mas que começava na antiguidade clássica e parava na Revolução Francesa. Não é isso.

Existe uma discussão acerca da violência em abordagens e sobre o uso de câmeras no uniforme de policiais militares. Essa discussão é abordada de algum modo na coleção?
SA: O trabalho policial precisa ser bem remunerado, entre outras razões, porque a vida do policial tem de ser disciplinada e a vida privada frequentemente é vigiada, para saber qual a rede de contatos dele. Há um estudo inglês que aponta que, até os anos 1960, a polícia inglesa era considerada uma das mais eficientes do mundo e uma das razões era o rigor na vigilância da vida privada. Nos anos 1960 houve uma eclosão dos movimentos de defesa dos direitos civis, como liberdades de opinião e de circulação, e isso também apareceu nos sindicatos policiais. Houve um relaxamento da vigilância da vida privada e em algum tempo começou-se a perceber o envolvimento de policiais em casos de corrupção e de violência. Verificaram que a grande variável era o fim da vigilância. Então precisamos ter carreiras e remuneração atraentes para os candidatos. A pessoa vai ter a liberdade, de certo modo, mais restrita, mas em compensação poderá ter qualidade de vida, habitação e padrão de consumo melhores. Sobre a violência policial, a coleção trata como algumas polícias enfrentaram essa questão, com reforço dos mecanismos de punição interna ou estímulos. A coleção deixa claro que, com violência policial, a democracia não se sustenta. A polícia tem a prerrogativa do uso da violência, mas é um uso legal, e não arbitrário e indiscriminado. Se o policial matou alguém em um confronto, ele é afastado e submetido a processo em que tem todo o direito de defesa. A polícia vai então prestar contas à sociedade do porquê de aquela ação ser a única possível para poder salvar a vida e a segurança de um maior número de pessoas. É o contrário muitas vezes do que acontece aqui. Quando há mortes, há imputação de responsabilidade, mas os processos nem sempre vão para frente.

Como avalia o excludente de ilicitude?
SA: Não é uma boa prática policial. Muitas vezes o policial usa força excessiva por se ver em uma situação em que sua vida foi colocada em risco, e tem estudos que mostram isso. Sou a favor de uma investigação rigorosa, com direito à defesa e que tenha por alvo, sobretudo, o aperfeiçoamento dos protocolos de ação e de transparência, para a sociedade avaliar se os procedimentos estão corretos ou não. Vamos pensar nos acidentes de avião. Os pilotos podem ter responsabilidade em uma queda, como pode haver uma situação absolutamente imprevisível. A investigação demora muitas vezes até três anos e visa mostrar para a indústria aeronáutica o que tem de ser corrigido e aperfeiçoado. É assim que você diminui as ocorrências. O número de voos hoje aumentou consideravelmente, mas o número de quedas com ocorrências fatais diminuiu bastante.

E quais são as contribuições da Série Direitos Humanos para leitores e pesquisadores?
SA: Divulgar textos de referência que pudessem melhorar a compreensão do que são direitos humanos para todos os públicos. São referências bibliográficas para quem quer estudar direitos humanos, estatísticas, estudos sobre a relação com a democracia. Há dois volumes importantes. Um é resultado de um seminário realizado no NEV/USP, sobre tortura, algo condenado há muitos anos. No entanto, com o combate ao terrorismo e crimes globais, há uma espécie de recrudescimento do uso da tortura. O texto discute esse renascimento e as consequências disso, tanto para a sociedade quanto para a persistência da democracia. O outro livro é resultado de um longo estudo, realizado em consórcio com a Organização Mundial de Saúde, sobre a infância saudável, que focou nos dois primeiros anos de vida das crianças e na relação com as mães. Em todas as sociedades em que as mães têm condições de proteger e cuidar dos filhos, o envolvimento futuro na violência é muito menos provável. No entanto, quando essa relação é mais frágil, uma parte maior das crianças se torna mais vulnerável à atração por gangues, quadrilhas, tráfico de drogas.

O debate em torno dos direitos humanos no Brasil tem se intensificado, expondo divergências de visões. Como a coleção contribui para o debate?
SA: Ao mostrar como diferentes sociedades alcançaram a liberdade e a democracia com respeito aos direitos humanos fundamentais. As pessoas pensam somente em segurança, nos crimes e na ideia do criminoso que não tem direito a se defender pelas leis. Mas, sem as leis, teríamos o uso arbitrário da força e amanhã, quem quer que seja, independentemente de ter cometido ou não um crime, pode ser objeto de agressão ou morte. Um dos volumes é um estudo sobre educação e direitos humanos, sobre como diferentes sociedades ampliaram o conhecimento público sobre direitos das mulheres, das crianças, respeito à diversidade étnica e racial e assim por diante. Direitos humanos não são apenas a proteção da integridade física e psíquica, mas também do respeito à identidade cultural, de uma vida digna, de liberdades fundamentais, do direito ao trabalho, a um salário digno, a uma habitação digna, a ter a saúde protegida, escolaridade para si e para os filhos e a proteção das leis contra a arbitrariedade de civis ou de autoridades. É a base da democracia e de sociedades republicanas. O problema é a comunicação, transformar esse direito em uma coisa sensível ao indivíduo, para que entenda que, para que seja protegido, o direito dos outros também precisa estar protegido.

Temos visto no país homenagens a torturadores. O livro vencedor do Prêmio Jabuti Tortura na Era dos Direitos Humanos discute essa questão no Brasil e em outros países?
SA: A tortura tem larga tradição, tanto em períodos de regimes autoritários quanto na vigência do estado de direito. As classes populares sempre foram objeto de tortura quando há suspeita de crimes. A luta é para impor limites à arbitrariedade do poder, à violência, à agressão e para fazer com que o poder institucional tenha base em leis negociadas, votadas e que representem a vontade da maioria. Lamentavelmente, é um fenômeno que ressurge. Vivemos uma era de autoridades completamente comprometidas com o passado, com o autoritarismo, com o reacionarismo e que acham que a tortura é um instrumento legítimo de condução de investigações policiais ou de repressão a reinvindicações por justiça social. As sondagens feitas pela grande mídia mostram que permanece um fundo de opiniões contrárias à tortura, mas não é suficiente quando se tem um governo que fala como se fosse imperativa. Não adianta dizer que é no sentido figurado, porque o figurado significa que a pessoa pode interpretar do jeito que quiser. Se isso se disseminar, teremos uma sociedade de pessoas que torturam e de “torturáveis”. Nos regimes nazista e fascista na Europa, uma das sustentações era uma rede de delatores, que era o vizinho que avisava a polícia que o outro era judeu ou pertencente aos grupos perseguidos. Isso cria uma sociedade baseada na guerra, e não na paz, e temos de nos recusar a viver na guerra, independentemente das diferenças.

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