“Caixa Modernista” reeditada traz novos documentos e ajuda a fomentar debates sobre a Semana de 22
O organizador, Jorge Schwartz, afirma que adições à obra da Edusp, que esgotou rapidamente, e outras publicações trazem novos olhares sobre o movimento
Em Edusp
Por Divulgação
A Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) lançou neste mês uma reedição da “Caixa Modernista” como parte das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, contemplando o período heroico do modernismo brasileiro, de 1922 a 1929.
Esta reedição inclui livros e outros documentos em formato fac-similar, cartões-postais que reproduzem pinturas, capas de livro, fotografias, material de divulgação de cinema e ainda uma partitura manuscrita de Heitor Villa-Lobos; no entanto, há diferenças em relação à caixa original. A reprodução do programa e do catálogo da exposição da Semana de 22, ambos com capa de Di Cavalcanti, integra este museu portátil, assim como de um esboço do programa do evento e de dois livros que representam o momento inaugural da poesia moderna no Brasil: “Pauliceia Desvairada”, de Mário de Andrade, e “Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, a partir do exemplar dedicado pelo autor a Mário, em que o presenteado deixou suas anotações. Nesta versão da caixa, o repertório musical ao redor do modernismo está contemplado por uma seleção de dez músicas feita por José Miguel Wisnik e Cacá Machado, as quais estão disponíveis em uma plataforma digital e podem ser acessadas por meio de um QR Code.
Quais as mudanças entre a edição original e a nova edição?
Jorge Schwartz: A caixa tem vinte anos e se esgotou rapidamente. Se você for procurar na Estante Virtual, tem um exemplar por R$ 2.400. Coisas de mercado. De fato, é um objeto que foi muito cobiçado na época, enfim, foi muito bom. A caixa é praticamente a mesma com uma qualidade, eu diria, muito melhor de cores e de impressão. Uma diferença é que a caixa anterior tinha um CD com uma lista de músicas, mas hoje o CD é quase obsoleto. A Edusp fez um QR Code, com a mesma embalagem, mas sem o CD, para que se ouçam as músicas em formato digital. Outra novidade está no catálogo da Tarsila do Amaral, da exposição em Paris, em 1926. Originalmente, o catálogo vinha acompanhado do convite para a exposição e tinha vários poemas em francês. Na primeira edição da caixa a gente usou a tradução da Teresa Thiériot. Nesta edição, muito curiosamente, a Gênese Andrade, que é uma colaboradora da maior importância, descobriu num jornal do Rio de Janeiro, logo depois da exposição, a tradução dos poemas pelo Guilherme de Almeida, que é um poeta que participou da Semana. São detalhes pequenos, mas isso é para o pesquisador que for ler e para a Casa Guilherme de Almeida vibrarem. Outra diferença é que a versão fac-similar do clássico “Pau-Brasil” reproduz o exemplar que o Oswald deu para o Mário. E ele faz uma brincadeira na dedicatória, em que escreve: “Ao autor de Pau… liceia Brasil”, porque o Oswald fazia muita chacota com o Mário e essa pode ter várias interpretações, por conta da homossexualidade do Mário. Este volume sai com todas as correções e anotações do Mário. Isso para o leitor tem um valor incalculável, porque para ver isso teria que ir ao Instituto de Estudos Brasileiros, pedir autorização e usar luvas para folhear. Curiosamente, a caixa também tem 22 cartões-postais e não foi proposital. Um dos cartões é uma obra que se desdobra em quatro: uma pintura do Cícero Dias, pernambucano, chamada “Eu Vi o Mundo… Ele Começava no Recife”, que é de 1926-1929. Nesta edição, a obra, restaurada, foi refotografada em exposição em São Paulo. Então, a gente tem as cores originais.
Como o senhor define o conteúdo e a importância desta caixa modernista para a compreensão do movimento?
JS: Eu quis que o colecionador e o professor de literatura brasileira pudessem consultar elementos de difícil acesso e que a caixa cobrisse um arco que vai de 1922 a 1929, que é quando esse movimento culmina. Depois veio tudo por água abaixo com a crise de 29. Na “Revista de Antropofagia”, o “Manifesto Antropófago”, que agora foi super-reproduzido, traz o “Abaporu”, da Tarsila, que é de 1928, então mostra essa interação entre Oswald e Tarsila, que são os fundadores desse movimento. O proprietário desta caixa terá o programa de uma das noites da Semana, com ilustração de Di Cavalcanti, porque houve uma exposição, algo que poucas pessoas sabem. A caixa também traz uma descoberta do Carlos Augusto Machado Calil: o Paulo Prado, que foi um dos mecenas da oligarquia paulista, digitou o programa e está em papel-carbono, uma raridade. Ainda, com cartões-postais, eu quis preencher o que faltava, então tem capas de livro, tem literatura, tem um cartaz do filme “São Paulo: A Sinfonia da Metrópole”, que é de 1929 e é muito arrojado. Tem uma partitura do Heitor Villa-Lobos, manuscrita, com a letra dele, das “Bachianas Brasileiras”. Aqui tem um cartão que não foi editado e sempre foi considerado como uma foto dos participantes da Semana. A foto é posterior e quem descobriu a nova data foi o Calil.
Como esse conteúdo contribui para a compreensão do movimento?
JS: Os poemas em si têm o elemento coloquial, a brevidade e a síntese, que se opõem à tradição simbolista e derramada. Têm um elemento urbano e há um elemento nacionalista muito forte, que tem a ver com o centenário da Independência, com um olhar para o passado. As características da poesia moderna são essas, além do humor, da fala caipira, da fala fonética, dos erros de português propositais, tudo introduzido na poesia como elemento moderno.
Como foi a curadoria desse material?
JS: Em 2000, eu fiz uma exposição na Espanha – que foi mostrada em São Paulo, na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), dois anos mais tarde – de pintura, literatura, com setecentas obras expostas de todo o Brasil. A partir de então eu senti que havia coisas a que o público jamais teria acesso. Na época, chamei de “museu portátil” e o termo resiste.
Apesar dessa importância do papel paulista, o senhor falou sobre “desregionalizar” o movimento. Por quê?
JS: O termo vem do Mário de Andrade, que tinha uma visão de um Brasil profundo e uma preocupação com isso. Ele não foi para Paris, mas fez viagens para o Amazonas. Então, o que acho que ele queria era mostrar a diversidade brasileira, as diferenças profundas entre o Sul, o Norte, o Nordeste, além do elemento afro-brasileiro. Embora o meu negócio seja Oswald de Andrade, acho que o maior pensador e artista da primeira metade do século XX foi o Mário. Em 1942, o Mário de Andrade faz uma conferência, com um balanço vinte anos depois da Semana, que é um mea-culpa, dizendo que a Semana não olhou para o elemento social. Por isso o regionalismo, porque a caixa não é uma representação paulista. O modernismo levou a fama de ser paulista e, aos poucos, começaram as reivindicações. Tanto assim que hoje se fala em modernismos, porque surgiram muitas revistas, surgiram movimentos.
Tivemos o centenário da Semana de 22, também o bicentenário da Independência do Brasil, e tivemos vários lançamentos com novos enfoques. Como esses novos materiais contribuíram para a compreensão do movimento modernista?
JS: Tem um livro que saiu pela editora Companhia das Letras, que chama “Modernismos: 1922-2022”, organizado pela Gênese Andrade. São cerca de trinta artigos que dão conta justamente de toda a transversalidade, da questão de sexualidade, música, moda, então há uma atualização de temas e gente muito qualificada participando. Por exemplo, o César Braga-Pinto disseca a questão da homossexualidade do Mário de Andrade. Realmente, é um artigo definitivo e são coisas que jamais poderiam ter sido ditas na época. Sobre a questão das mulheres, a Maria de Lourdes Eleutério fala de várias artistas, escritoras que não haviam sido destacadas. Como a Pagu, que começa tarde, em 1930. Outro livro, também da Companhia das Letras, é “O Guarda-roupa Modernista: O Casal Tarsila e Oswald e a Moda”, da Carolina Casarin. É uma pesquisa que ela fez em Paris, uma novidade. Outro livro importante, que saiu pelas Edições Sesc São Paulo, é uma coletânea de artigos que analisam cada um dos poemas da “Pauliceia Desvairada”. É uma sacada o título “Lirismo + Crítica + Arte = Poesia: Um Século de ‘Pauliceia Desvairada’”.
Além de o senhor ter organizado e lançado “Obra Incompleta”, de Oswald de Andrade, houve agora uma nova impressão de “Vanguardas Latino-americanas” (ambas pela Edusp). Acredita que deve ocorrer o reaquecimento dos debates sobre o modernismo?
JS: Eu jamais imaginei que a “Obra Incompleta” do Oswald, concebida nos anos 1980, sairia em 2021. Demorou tudo isso e é uma edição crítica, cheia de anotações. Foram convidados intelectuais e vários faleceram, como Antonio Candido. São mais de 1.500 páginas em dois volumes, com esforço monstruoso da Edusp. Mas, se fosse hoje, eu faria diferente. Puxaria muito mais o Oswald polêmico, contestador. Hoje faz falta um Oswald de Andrade com a mordacidade, a agressão viperina que ele tinha. Ele pagou caro por ser tão desbocado, perdeu a fortuna, perdeu os amigos. Mas, enfim, a obra saiu e estou supercontente. Já “Vanguardas Latino-americanas” foi meu doutorado e já foi de caráter comparativo, entre o modernismo brasileiro, argentino… Essa década de 1920 atravessou toda a América Latina com intelectuais de primeira ordem, com revistas maravilhosas na Argentina, no Peru, no Chile, e não tem país hispano-americano que não tenha tido o seu movimento de vanguarda. Esse projeto acabou virando uma obra de referência do modernismo, porque é totalmente anotado, tem todos os manifestos: os brasileiros, os traduzidos do espanhol para o português e praticamente todas as revistas importantes.