Análise epidemiológica da obesidade evidencia os efeitos nocivos dos alimentos ultraprocessados na saúde pública
Aproximadamente um quarto da população brasileira está acima do peso, e estudos indicam que a causa é o crescimento da oferta de produtos de baixa qualidade
Em Edusp
Por Divulgação
A noção de que consumir alimentos ultraprocessados leva à obesidade foi originalmente proposta no Brasil, sendo resultado de estudos pioneiros realizados pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).
Esse é o tema que está no cerne de “Epidemiologia Nutricional Aplicada à Obesidade”, escrito pela professora Maria Laura da Costa Louzada, que leciona na Faculdade de Saúde Pública da USP e atua como vice-coordenadora do Nupens.
No passado, a obesidade era vista como um problema de desequilíbrio energético, de descontrole. Hoje, é amplamente reconhecido que a oferta de alimentos ultraprocessados tem um papel central na epidemia de obesidade. Estima-se que um quarto da população brasileira está acima do peso, uma proporção extremamente alta para qualquer doença, e esse fenômeno não pode ser explicado apenas como uma questão de acúmulo de casos individuais.
Neste lançamento da Edusp, Louzada oferece uma apresentação didática dos conceitos centrais da epidemiologia, dos métodos de diagnóstico da obesidade e da análise do consumo alimentar, traçando as conexões entre esses pontos para entender como a obesidade se manifesta nas populações e como ela pode ser evitada.
O que a motivou a se envolver com os temas da epidemiologia e da obesidade, estudados neste livro, e como foi a colaboração com o Nupens?
Maria Laura Louzada: Acho que a história começou quando vim para São Paulo para fazer meu doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP. A principal motivação desse estudo é a epidemia de obesidade, que vem sendo observada há algumas décadas e cujas causas procuramos entender. Então, quando vim para São Paulo, comecei a estudar o efeito do processamento de alimentos no aumento da prevalência de obesidade na população brasileira e como isso mudou os padrões de alimentação, afetou a alimentação tradicional e alterou também os padrões de nutrição. Esse conceito central sobre a causa da obesidade surgiu no Brasil. Em 2009, o Nupens publicou o primeiro artigo trazendo a ideia de que o processamento de alimentos seria essencial para explicar esse fenômeno. Antes disso, o Nupens já tinha feito os primeiros estudos mostrando o aumento da prevalência de obesidade. É um grupo pioneiro no mundo inteiro em relação a essa discussão. Eu vim para São Paulo em 2012, fui orientada pelo professor Carlos Monteiro, que foi o coordenador do Nupens por muitos anos, e fiz meu doutorado com a supervisão dele. A maioria dos trabalhos que fiz sobre as causas da obesidade e políticas públicas de controle da obesidade foi em colaboração com diversos pesquisadores do grupo.
O livro aborda o debate sobre a obesidade de acordo com a questão populacional, com os métodos para diagnóstico e com a avaliação do consumo alimentar. Tendo isso em vista, quais são os seus objetivos com a obra?
MLL: Quando falo que esse debate é populacional, o que quero dizer é que não se trata de um livro clínico. Não é um livro para apoiar um profissional da saúde que vai atender uma pessoa com obesidade. A discussão que eu faço é do campo da epidemiologia, e o objeto de estudo da epidemiologia é a população. Então, eu diria que tenho três objetivos. O primeiro é a qualificação do método usado na epidemiologia para o estudo da obesidade. Faço também um paralelo com a questão dos nutrientes. Por exemplo, para descobrir se um suplemento de ferro pode diminuir ou não a anemia, é possível fazer um estudo com os participantes divididos em dois grupos, dando suplemento de ferro para um grupo e para o outro não; no caso da obesidade, é muito mais complexo definir como fazer esse estudo. O segundo objetivo é discutir métodos de avaliação do estado nutricional, da obesidade e do consumo alimentar. Precisamos adaptar instrumentos antigos; a pirâmide alimentar que distinguia os alimentos ricos em carboidratos ou em lipídios, por exemplo, nesse caso não funciona mais. E, por fim, um debate mais conceitual: a questão dos modelos causais da obesidade e das políticas públicas que vêm sendo defendidas atualmente. Eu adoto uma epidemiologia crítica, que ajuda a interpretar os resultados dos estudos.
Como você explicaria as causas da intensificação da epidemia de obesidade?
MLL: O grande motivador do livro é a magnitude desse problema. Temos 25% da população adulta brasileira com obesidade, não existe nenhuma outra doença que tenha tanta prevalência. Eu dividi o livro em três partes. A primeira tem uma abordagem mais metodológica e didática, com o objetivo de apoiar a qualificação dos estudos na área de epidemiologia nutricional aplicada à obesidade. A segunda parte é mais descritiva em relação ao fenômeno. E a última, que é onde eu discuto as causas da obesidade, é mais analítica e autoral. Quando falo sobre as causas, mostro como esse tema está em disputa; por muito tempo se pensou que a obesidade era causada por um simples desequilíbrio energético: se a pessoa comesse mais do que precisasse, ganharia peso e desenvolveria obesidade. Se isso fosse verdade, teríamos um problema de descontrole afetando um quarto da população brasileira. Isso não faz nenhum sentido. Há aproximadamente dez anos, começamos a entender essa nova hipótese segundo a qual uma transformação na forma como os alimentos são processados realmente começou a mudar o modo como as pessoas comem. Os alimentos são hoje cada vez mais processados, cheios de aditivos, com combinações de substâncias a que o nosso cérebro não estava acostumado antes; isso nos levou a comer mais do que precisamos. Essa transformação do sistema alimentar em direção ao ultraprocessamento é o que de fato explica a questão; não se trata de uma ou outra pessoa adquirindo essa doença, mas de um fenômeno social e epidemiológico. Há cada vez mais evidências que comprovam essa associação. O primeiro desses estudos foi feito aqui no Brasil, na USP, com um delineamento mais simples, chamado transversal, mas logo em seguida o conceito dos alimentos ultraprocessados ganhou o mundo e vários estudos começaram a ser feitos. Hoje existe certo consenso na literatura em relação a isso, e um dos principais motivos é o fato de que o alimento ultraprocessado muda a forma como o nosso cérebro processa a fome e a saciedade. Passamos centenas de anos aprendendo a regular a fome e a saciedade com alimentos in natura e, de uma hora para outra, fomos expostos a substâncias que não existiam nos nossos hábitos alimentares.
Quais regulações podem ser aplicadas aos ultraprocessados para auxiliar no combate a esse problema e quais são as dificuldades encontradas para implementar essas regulações?
MLL: A regulação é extremamente desafiadora porque lida com uma assimetria de poderes. Essa é uma indústria que tem um poder econômico gigante, que se transforma em poder político. Ela penetra nos governos locais, impede medidas de proteção da saúde, influencia os governos por meio do lobby e compra as pequenas empresas nacionais que produzem alimentos de verdade. E, do outro lado, temos a saúde pública e a ciência. Precisamos de um conjunto de medidas para frear o acesso a esses alimentos. Um exemplo que eu sempre gosto de citar é a política de restrição ao tabagismo no Brasil. Na década de 1970, a prevalência de adultos tabagistas era gigantesca, mas as pesquisas mais recentes mostram que menos de 10% da população adulta é tabagista, uma queda brutal. Isso foi conquistado com um conjunto de medidas: o imposto seletivo sobre o tabaco, os rótulos de alerta, a regulação relativa a ambientes livres de tabaco e as campanhas para mostrar à população os problemas relacionados ao fumo. E podemos traçar um paralelo entre o tabaco e os ultraprocessados, porque eles não representam uma necessidade nutricional vital, existem vários outros alimentos. Precisamos pensar em regular ambientes, por exemplo, precisamos ter escolas, hospitais e ambientes institucionais de trabalho em geral livres de ultraprocessados. Precisamos de rotulagem de alerta para facilitar a identificação dos ultraprocessados, de um imposto seletivo sobre esses alimentos e de campanhas educativas. E isso tem que constituir uma ação sistêmica, porque adotar só uma ou outra medida não funcionaria. Somente explicar para as pessoas que os ultraprocessados são ruins, tendo um sistema alimentar que favorece o consumo desses produtos, oferecidos a preços mais baratos em comparação com as outras comidas, definitivamente não funciona. Precisamos realmente de uma regulação dos sistemas alimentares, o que é uma possibilidade com a reforma tributária que está em curso. A primeira parte foi aprovada e agora ocorrem as discussões sobre o imposto seletivo. Tivemos uma vitória parcial com a dedução total de imposto sobre os alimentos saudáveis da cesta básica, que são os in natura, minimamente processados, e os ingredientes usados para preparar esses alimentos. Agora resta uma batalha adicional muito difícil, que é sobretaxar os ultraprocessados e colocá-los ao lado das bebidas alcoólicas e do tabaco. Mas aí voltamos à questão do conflito de interesse e do poder que as associações das indústrias de ultraprocessados têm sobre essas decisões.
No livro você menciona que a história da obesidade é baseada em várias hipóteses concorrentes, como: “uma caloria é uma caloria”, insulina-carboidrato, o papel do processamento de alimentos. O que são essas hipóteses?
MLL: A primeira dessas hipóteses é baseada neste truísmo: “uma caloria é uma caloria”. Os autores defendiam que não importava se uma caloria vinha de uma maçã ou de um chocolate, ela seria igual, produziria efeitos biológicos idênticos em nosso corpo. E isso se traduziu em um tratamento baseado em comer menos, que obviamente não funcionou. As evidências começaram a desafiar essa hipótese, porque as fontes de calorias têm efeitos diferentes no nosso corpo. Até a própria lógica vai contra esse conceito: quando você começa a comer menos, o seu corpo passa a economizar e você para de emagrecer; então, para continuar emagrecendo, você teria que comer ainda menos, e o seu corpo reagiria de novo para sobreviver. Não faz sentido. Para substituir essa ideia, surgiu a hipótese insulina-carboidrato, afirmando que a obesidade seria causada por um aumento excessivo no consumo de carboidratos. Então começaram outros tipos de tratamento, com dietas altamente restritas no que diz respeito aos carboidratos. Essa hipótese foi parcialmente aceita no começo, mas uma das maiores críticas recebidas se deveu ao fato de que esse tratamento não é sustentável a longo prazo nem saudável. A hipótese que revolucionou os estudos sobre o tema surgiu aqui no Brasil, quando se entendeu que precisávamos evitar essa abordagem limitada ao nutriente. Ela só funcionava quando os problemas de saúde pública se explicavam pela deficiência de nutrientes. Essa terceira hipótese, que eu defendo, sustenta que a epidemia de obesidade deriva do processamento industrial de alimentos antes de serem disponibilizados para as pessoas.
Você diria que essas hipóteses anteriores, “uma caloria é uma caloria” e insulina-carboidrato, estão superadas ou são só parte do quadro total?
MLL: Eu diria que elas estão superadas para quem faz ciência livre de conflitos de interesse. Muitas vezes a indústria de alimentos tenta retomar isso, trazer de volta a culpabilização das pessoas. Existe um discurso muito forte da própria indústria segundo o qual não existe alimento ruim, sendo uma questão de equilíbrio. Como se não houvesse estímulos que desequilibram o consumo alimentar. São paradigmas ultrapassados que ainda sobrevivem. A hipótese da responsabilidade dos ultraprocessados não é 100% aceita, mas continua sendo refinada, com estudos que investigam os mecanismos de ação desses alimentos no nosso corpo. Hoje vejo cada vez menos cientistas sérios negando que o processamento de alimentos é um problema.
Existem propostas bem-sucedidas no Brasil ou em outros países que tenham alcançado efeitos mensuráveis no combate à epidemia de obesidade e na disponibilidade nutricional? Você destacaria alguma ação ainda pouco empregada que poderia ter eficácia nesse contexto?
MLL: Não existe um país que seja um caso de sucesso como um todo. O que vemos são estudos mais pontuais que mostraram a efetividade de algumas medidas. Temos aqui no Brasil um exemplo emblemático, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que atualizou suas diretrizes para restringir a oferta de ultraprocessados nas refeições das escolas públicas. E hoje já temos estudos indicando que as crianças que consomem a merenda escolar estão mais protegidas da exposição aos ultraprocessados. No México, foram realizadas pesquisas que mostraram que a sobretaxação dos refrigerantes levou a uma diminuição do consumo desses produtos. Estudos no Chile indicaram que alertas no rótulo frontal dos produtos realmente fazem com que as pessoas escolham esses alimentos com menos frequência. Porém, essas são medidas muito pontuais, não há nenhum país que de fato tenha enfrentado a situação de forma mais sistêmica. Existe um estudo, citado no livro, que foi revolucionário, porque estabeleceu a conexão da sindemia global de obesidade e desnutrição com as mudanças climáticas. Os autores propuseram que há muitos fatores comuns nas raízes das mudanças climáticas e da má nutrição, que se divide em desnutrição e obesidade. Entre esses fatores comuns estão os sistemas alimentares, que causam as mudanças climáticas pelos modos de produção insustentáveis, causam obesidade pela oferta de alimentos não saudáveis e também causam desnutrição porque geram desigualdades brutais no que concerne ao acesso aos alimentos. Esses mesmos autores lembraram como a história do tabagismo começou a mudar com a Convenção-quadro para o Controle do Tabaco. Os países que foram signatários dessa convenção concordaram em adotar medidas como sobretaxar o tabaco, criar ambientes livres de fumo, fazer a rotulagem do tabaco. A convenção foi muito importante porque diminuiu a capacidade da indústria de influenciar nessas decisões, já que vários países foram signatários. Então, a realização de uma convenção global sobre sistemas alimentares, com vários países envolvidos, seria talvez uma forma de controlar essa capacidade da indústria de prejudicar as políticas públicas.
Quais os próximos passos para avançar no estudo e na regulação dos alimentos ultraprocessados?
MLL: Ainda temos muito o que avaliar em relação à questão do impacto da implementação das políticas públicas. Além de testar essas políticas em ambientes controlados, é fundamental avaliar os resultados depois da implementação. E acho que ainda precisamos avançar muito nos estudos de processamento de alimentos. O que faz com que o processamento de alimentos cause obesidade? Ainda não temos todas as respostas em relação a isso. Há uma linha de estudo que tem me interessado bastante, abordando a possibilidade de o consumo de alimentos ultraprocessados levar a mecanismos cerebrais similares aos do vício em outras substâncias. Quando se descobriu como a nicotina agia no cérebro, foi algo revolucionário, a ponto de as pessoas começarem a aceitar que a regulação era necessária. Então, podemos começar a aceitar a hipótese de que o ultraprocessado, por causa de seu conjunto de substâncias, também conta com mecanismos que enganam o nosso cérebro e fazem com que as pessoas não tenham mais controle sobre suas escolhas alimentares. Ninguém está falando que comida vicia; estamos falando de um tipo de produto feito para ser consumido em excesso e, assim, dar lucro para a indústria. Os ultraprocessados representam só uma pequena parte das possibilidades nutricionais, embora a indústria queira nos convencer de que o sistema alimentar hoje simplesmente é assim.