Adentrando a arte de Hélio Oiticica como espaço de participação
Experientes estudiosos da obra do artista, Paula Braga e Celso Favaretto examinam as “Manifestações Ambientais” no novo livro da coleção Prismas
Em Edusp
Por Divulgação
Hélio Oiticica foi um dos artistas mais inovadores do cenário brasileiro, reconfigurando toda a relação entre as artes e o público. Em suas criações mais seminais, a ideia do espectador deixa de fazer sentido, sendo substituída pela figura do participante, que interage, que se movimenta, que entra na obra e sai.
Esse é o contexto por trás de “Manifestações Ambientais, de Hélio Oiticica”, lançamento mais recente da coleção Prismas, da Edusp. No livro, os autores Celso Favaretto e Paula Braga analisam uma série de obras que Oiticica categorizou como Manifestações Ambientais, com destaque para “Tropicália” (1967) e “Éden” (1969).
Ambos são veteranos na arte de Oiticica. Favaretto escreveu “A Invenção de Hélio Oiticica” (1992), publicado pela Edusp, um dos estudos pioneiros sobre o artista no Brasil. O autor municiou os estudos de Braga, inclusive orientando-a em seu doutorado, em 2007. A autora lançou também “Hélio Oiticica: Singularidade, Multiplicidade” (Perspectiva, 2013), que aborda a arte de Oiticica a partir da década de 1970.
Quais particularidades das Manifestações Ambientais de Hélio Oiticica motivaram a análise do tema e a produção do livro?
Paula Braga: A obra do Oiticica é muito densa, mas tem um caminho muito lógico para a compreensão, ligado ao fato de que ele começou com a pintura. Ele fazia os Metaesquemas, que são guaches sobre papel com formas geométricas, como retângulos coloridos, e se vê que aos poucos ele começa com os retângulos bem compactados. Aos poucos, aqueles retângulos vão se movendo no plano do papel. A partir daí, a cor vai sair do plano do papel. Depois, tem a passagem da cor do bidimensional do papel para o tridimensional do espaço, que é quando surgem obras como os Bilaterais e os Relevos Espaciais, que são placas de madeira penduradas no teto e pintadas de uma cor com variações muito sutis nas tonalidades. Essa obra já convida o espectador a participar, ou seja, convida o espectador a colocar o próprio corpo em relação à obra, circulando em volta. E quando a pessoa faz isso, a cor também vai mudando com o seu movimento. A obra do Oiticica vai se desenvolvendo a partir daí, dentro da ideia de envolver o espectador, de criar um ambiente ou um espaço estético para interferir na subjetividade e no comportamento daquele espectador, que então vira um participador. Esse é um percurso muito lógico que responde a um processo histórico que vinha desde o modernismo europeu e os artistas pós-Revolução Russa, como Mondrian, Malevich e Rodchenko. É como se o Oiticica expandisse, continuasse, realizasse o que esses artistas do início do século XX começaram a fazer. As Manifestações Ambientais, então, são o ápice desse desenvolvimento.
Celso Favaretto: Em meados dos anos 1950, o trabalho de Oiticica se localizava no que parte dos artistas e da crítica considerava a crise da pintura, um momento em que o abstracionismo geométrico tinha chegado ao seu ponto alto de definição. Os Metaesquemas de Oiticica ainda são pinturas, retângulos pintados em guache com uma espécie de abertura entre eles. Não é uma divisão clara, como era no concretismo; aqui parece que há certas oscilações nas aberturas, o que dá uma sensação quase tátil: você tem vontade de, com a unha, puxar uma espécie de película. Oiticica diz que é a pintura deixando de ser o quadro. A pintura tem que estar em outro lugar, em um espaço geral. E se ela está no espaço, pode se movimentar. Isso é a introdução do tempo na pintura, um assunto inovador. A crise da pintura equivale a pensar que a pintura não precisaria estar no plano e que, portanto, poderia explorar outras possibilidades plásticas. Esse tipo de pensamento ocorria desde a década de 1910, entre artistas como os construtivistas russos – Malevich, Tatlin, Pevsner – e, depois, Mondrian, Kandinsky e outros. Oiticica escreve, em anotações da década de 1950, que a pintura precisa sair do espaço e que o quadro acabou. Mas ele não quis proclamar o fim da pintura, ela só teria que explorar outras dimensões. Andando pelos Núcleos, a cor se expande para o espaço e envolve o ex-espectador, que agora é participante. Participante porque ele não tem mais a sensação de observar os quadros de um ponto fixo. O passo seguinte é expandir esse espaço de participação. É quando surgem as chamadas Manifestações Ambientais, começando com os Parangolés: capas com várias camadas e de vários materiais que pessoas podiam vestir. Elas vão adejando no espaço. A cor entra e sai. É outro modo de participação. Ele vai criar depois Manifestações Ambientais performáticas e com coisas instaladas dentro delas. As pessoas têm que entrar, ler, tocar em terra, pisar em água, ver uma televisão ligada ou se aninhar em alguns lugares. O caráter de participação é mais aberto e mais totalizador. O terceiro elemento é o corpo, é a assunção do corpo. O corpo entra como protagonista das ações produzidas nos ambientes. Pintura, participação, incorporação.
Conceitos como o “além da arte”, a “antiarte”, a “morte da pintura”, associados a Oiticica, foram desenvolvidos por ele próprio?
PB: Alguns já vinham sendo usados antes. A morte da arte, ou especificamente da pintura, tem uma tradição na história da arte. Houve vários pontos em que foi declarada a morte da pintura, ou até a morte da arte, se você voltar para o início do século XIX, com Hegel. Agora, a antiarte tem uma tradição dadaísta do começo do século XX, na Europa. O que o Oiticica faz é juntar essas ideias de “morte da arte”, “morte da pintura” e “antiarte” para propor que novas coisas são arte, coisas que antes não seriam consideradas arte. Então, por exemplo, você se deitar num quadrado de madeira cheio de areia, que é um pedacinho da Manifestação Ambiental chamada “Éden”: isso passa a ser considerado arte pela proposição do Oiticica. Por quê? Ele começa falando: “O que eu faço é antiarte, o que eu faço não vai ser entendido como arte, o que até hoje se considerou arte; eu estou fazendo uma coisa nova. E é um novo que já foi tentado e anunciado antes, mas eu trago de novo, para os anos 1960, essa antiarte, que então passa a ser conhecida como arte”.
CF: Aquilo que na década de 1960, principalmente, se chamava “morte da arte” responde a uma pesquisa dos artistas desde as vanguardas do início do século XX. Morte da arte significaria que aquele conceito e aquela experiência da arte que se tinham, digamos, do Renascimento ao século XIX não mais satisfaziam as expectativas, sejam as dos artistas, sejam as dos apreciadores das artes. Isso porque, na passagem do século XIX para o século XX, a produção industrial, a mudança na organização da sociedade e o aparecimento daquilo que viraria a cultura de massa mudaram a relação das pessoas com as artes. Então, as vanguardas do início do século XX, como o cubismo, o dadaísmo, o expressionismo, o surrealismo e a arte abstrata de todos os tipos, responderam à pesquisa dos artistas que buscavam outras formas não só de expressão como também de diluir as fronteiras tradicionais entre arte e vida. O que se queria imediatamente era pensar a vida corrente, aquilo que a gente chama de vida cotidiana, que é social e é política.
Como isso se articula com a dimensão política que vocês abordam no livro?
PB: O que interessa tanto no Hélio Oiticica é que o que ele propôs como arte é algo que transforma o participador de um jeito essencial e, transformando o participador, ele transforma o jeito daquela pessoa de estar no mundo, ou seja, transforma a subjetividade. Isso tem um efeito político, porque, se algo transforma o jeito como você está no mundo, você não aceita mais certas coisas. E isso é uma atuação política no mundo. Por exemplo, você não vai aceitar mais que o samba da Mangueira seja considerado uma arte menor. Todo o campo da cultura se torna algo transformador das pessoas e, portanto, tem um efeito político na sociedade. Não vamos esquecer que ele está fazendo isso nos anos 1960. A obra dele adquire esse caráter fortemente transformador das subjetividades a partir de 1964. Então, é todo um esforço de vários artistas que vão tentando, por meio das produções artísticas, transformar as pessoas e, portanto, a nossa sociedade.
CF: A diluição das fronteiras ou uma relação mais intensa entre arte e vida já estava nas vanguardas, e Oiticica diz claramente que vai intervir nesse trabalho. Intervir de maneira inovadora, porque, na década de 1960, essa questão da vida tanto individual como social e política está, digamos, muito mais à flor da pele. Está agora no corpo como protagonista dessas ações. A arte abstrata também se preocupava com isso. O concretismo paulista, por exemplo, teve uma poesia, como na pintura, ligada à arquitetura, uma tentativa de pensar a vida na sociedade industrial e de consumo. Há uma ambivalência entre as coisas serem úteis e serem artísticas. Isso é uma bomba contra a concepção de que a arte seria separada da vida, seria objeto de beleza, de contemplação e do sublime. Agora, ela é uma experiência da vida que corre, da vida que acontece, e é arte também. Isso é antiarte no sentido de ser “anti” aquela arte do passado. Assim, ela passa a ser participante não só de ambientes artísticos, o social e o político estão nesse fazer arte. As ambientações são lugares de sensações de vida localizadas historicamente e socialmente. Então, são políticas. O Oiticica deixava bem claro: o político não está apenas na crítica à sociedade, às posições políticas, à moral, às religiões, aos comportamentos; a política está também nesse posicionamento de mudar os comportamentos perante a arte e através da arte.
Como analisar a arte quando ela tem uma dimensão interativa e comportamental?
PB: Essa análise é feita levando em consideração a indeterminação. Você não sabe o que vai acontecer ali. A obra não prescreve um comportamento ao participador. A obra oferece um campo e o participador vai fazer o que quiser com aquilo que está lá. A participação vem sem instruções; é muito livre, e isso é importante.
CF: É livre, mas quem participa está desenvolvendo algo que o artista propõe. Todo o ambiente criado por Oiticica, toda a montagem, surge da escolha que o artista faz de uma série de proposições. Ele faz uma escolha de por onde ele vai entrar e o que ele vai colocar nesses ambientes. Então, o que você chama de observar e criticar é levantar aquilo que está estabelecido pelo artista. É nesse sentido que o Oiticica falava que o artista é um propositor.
PB: Sim, mas é o “propor propor”. Propõe que o participador faça sua proposição também. Tem uma estrutura que o artista dá para o participador criar em cima.
Vocês usam muito os diários de Oiticica, que ajudam não só na análise das obras como também na das ideias dele. Como isso contribui para o estudo?
PB: Ele é um artista pensador, que escreve sobre tudo que inventa e teoriza. Ele é um artista e teórico ao mesmo tempo, e teoriza citando outros filósofos. Esses diários têm algumas páginas publicadas em um livro e outras estão sendo publicadas aos poucos, em catálogos e vários livros novos. Mas tem um livro de 1986 chamado “Aspiro ao Grande Labirinto” com várias páginas dos diários. E, cada vez que lançam um livro novo, colocam páginas novas dos diários, do que ele chamava de “notebooks”, os cadernos em que ele ia escrevendo, fichários, e tudo isso está digitalizado também no Arquivo Hélio Oiticica. Então, a gente estuda o Hélio também com base nesses textos.
CF: Esse é um caso raro de artista que ao mesmo tempo pensa o evolver da sua obra e a relaciona com a de outros artistas. Ele é, ao mesmo tempo, artista pensador em relação à cultura e à estética. O que ele escrevia era uma coisa muito forte e incisiva. Ele tinha uma percepção muito clara do que fazia, do que queria, embora não soubesse no fim da vida para onde aquele trabalho iria depois. Isto é, qual seria o “além da arte” a que ele estava visando. Muito da evidência do Oiticica hoje, não só no Brasil como no mundo todo, vem em função da potência reflexiva desses textos, como esses que estão em “Aspiro ao Grande Labirinto” e outros que o Projeto Hélio Oiticica publicou. Mas muita coisa que está nesse material digitalizado é mais difícil, é um emaranhado de escritos, cartas, críticas de colegas, muito de filosofia etc.; não é fácil de navegar. O nosso colega Frederico Coelho escreveu um livro que se chama “Livro ou Livro-me” (EdUERJ, 2010); é uma tentativa de entrar nesses textos labirínticos de Oiticica, que ainda são muito utilizados por artistas, pensadores e críticos, encontrando sempre elementos indicativos de um porvir da arte, de uma arte por vir. Como Oiticica morre cedo, com 42 anos, no final da vida ele escreveu que tudo que tinha feito antes era uma espécie de prelúdio.
Qual a relação da obra “Tropicália” com o movimento tropicalista?
PB: Primeiro o Oiticica faz a obra e a chama de “Tropicália”. Aí o cineasta Luiz Carlos Barreto sugere “Tropicália” como título para uma música que o Caetano compôs. Ele fala sobre o Hélio Oiticica, diz que ele fazia obras parecidas com a música do Caetano. E aí o Caetano intitula a canção dele “Tropicália”. A partir disso, surge na música popular brasileira o tal do tropicalismo.
CF: Não existia tropicalismo quando Oiticica fez o ambiente que ele chamou de “Tropicália”, uma instalação, como a gente diz hoje, com várias cabines – o que ele chama de Penetráveis. O espectador vai entrando e topando com coisas sobre o Brasil, com frases, elementos populares e momentos eruditos. No percurso tem uma televisão e está tocando música no ambiente. No dia da inauguração, seus amigos da Mangueira estavam lá, tocando e participando. Então, há esse jogo entre a arte chamada de erudita, a arte popular e a arte de massa, está tudo articulado. Quando Caetano mostra aquela música para Barreto, ele vê a estrutura dela e a compara com o que Oiticica está fazendo. A música “Tropicália” faz exatamente isso, vai produzindo uma intersecção de elementos populares e da cultura de massa. Aparentemente, a música “Tropicália” é surreal, mas ela é construída com a articulação desses três níveis de cultura. Caetano produz uma coisa construtiva e uma coisa desconstrutiva. É a destrutividade dadaísta: vai construindo e desconstruindo. No caso de Oiticica, a desconstrução tem que ser efetivada pelo participador. À medida que ele entra no labirinto e vai percebendo a alternância das coisas que são ao mesmo tempo populares e da cultura de massa do Brasil, vai passando por um processo de transmutação que Oswald de Andrade chamava de antropofágico. Ele vai deglutindo aquilo tudo, assim como a música de Caetano. Porque tanto “Tropicália” de Oiticica quanto “Tropicália” de Caetano formam uma imagem do Brasil. Depois, Oiticica e Caetano se conheceram, Oiticica viu o que os Novos Baianos estavam fazendo e disse: “Olha, realmente nós estamos fazendo a mesma coisa”.
Como foi o processo de escrever o livro em dupla?
CF: A gente se reuniu várias vezes e foi interferindo um no texto do outro. Muita coisa que eu escrevi era muito ligada àquele meu primeiro livro. Mas a Paula interferiu, ela modificou algumas coisas, não tanto na substância do pensamento, mas na ordem da expressão. E a Paula, além do que ela escreveu como intervenção no meu texto e da parte final, que é toda dela, foi fundamental. Toda a produção do livro passou por ela, que também negociou as imagens com o Projeto Hélio Oiticica.
PB: E teve um trabalho interessante, também, de tentar deixar homogênea a escrita. O Celso tem uma densidade do discurso, eu sou muito mais de explicar, coisa de professora. Então, o meu texto é mais para o grande público. O texto do Celso funciona como uma máquina filosófica; é um texto denso, mas que, quando você o enfrenta, permite que surjam coisas novas no seu jeito de pensar. O meu texto é explicativo.
CF: Não é só explicativo, é apenas outro modo de pensamento. O importante do seu modo de pensar no livro é que você vai aliviando o meu texto.
PB: Foi um pouco isso. Sem descaracterizar a densidade da linguagem conceitual de um filósofo como o Celso, eu tentei aliviar um pouco mais a leitura. Não para o grande público, porque não acho que seja um livro para o grande público. Não é um livro para ler na praia, é um livro de estudo.
CF: É para todo mundo que está interessado em trabalhar com esse problema. Quem tem um mínimo de formação teórica, de convivência com teóricos e críticos das artes, e informações sobre coisas brasileiras também consegue entrar no livro.