A complexa relação entre texto e imagem nas ilustrações de Poty Lazzarotto

Símbolo da cultura curitibana, a jornada de Poty pelas artes visuais revela a riqueza contida no seu trabalho de ilustrador

Em Edusp

Por Divulgação

Para o professor Fabricio Vaz Nunes, da Universidade Estadual do Paraná, a oportunidade de escrever sobre a obra de Napoleon Potyguara “Poty” Lazzarotto veio como uma forma de unir o útil ao agradável: a chance de desenvolver sua tese de doutorado e se deleitar com grandes obras da literatura ao mesmo tempo. O que Nunes chama na introdução de seu livro “Texto e Imagem: A Ilustração Literária de Poty Lazzarotto”, publicado pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), de um motivo pouco nobre logo se engrandece em uma empreitada pela valorização do trabalho do ilustrador e pela quebra do estereótipo segundo o qual a ilustração pertenceria apenas a livros infantis.

Em “Texto e Imagem”, Nunes explora a complexa relação entre as ilustrações de Poty e os inúmeros livros nos quais o autor trabalhou, examinando seu criterioso método de criação e evidenciando o valor que uma boa ilustração pode agregar ao texto. Através da análise da obra do curitibano, Nunes transporta o leitor ao universo da ilustração, mostrando como por vezes a mesma técnica pode ser aplicada para obter resultados diferentes e revelando quanto o diálogo entre texto e imagem pode enriquecer uma obra ao criar pontos de vista complementares ou contraditórios.

No ano do centenário de Poty Lazzarotto, “Texto e Imagem” presta bela homenagem a um artista que teve um início humilde, criando quadrinhos à mão, e alcançou o reconhecimento local e internacional com a criação de grandes murais espalhados pelo Brasil e pelo resto do mundo.

Como surgiram o seu interesse pelas obras de Poty Lazzarotto e a ideia de analisar a relação do artista com a literatura no livro “Texto e Imagem”?

Fabricio Nunes: Ele é um artista muito conhecido em Curitiba, temos muitos murais públicos dele por aqui. É até difícil precisar a quantidade porque alguns estão em lugares públicos e outros em instituições privadas. O que me levou a escrever o livro foi a busca por um tema para o meu doutorado em história da arte; eu estava com dificuldade em achar um assunto de que realmente gostasse. Foi em certo sentido um motivo pouco nobre, eu queria ler mais romances e mais livros de contos. Então comecei a buscar temas que associassem as artes visuais com a literatura. Fiz uma pesquisa prévia sobre a revista “Joaquim”, que foi editada aqui em Curitiba entre 1946 e 1948 e organizada e liderada por Dalton Trevisan, amigo do Poty. Era uma revista que contava com muitas ilustrações e gravuras. O Poty ilustrou várias obras do Trevisan posteriormente, incluindo um de seus primeiros livros, chamado “Sete Anos de Pastor”. Comecei então a investigar as relações entre as ilustrações e os textos nessa revista, que era focada em literatura. Eu me debrucei, assim, sobre as ilustrações do Poty e comecei a perceber a quantidade de livros nos quais ele tinha trabalhado – são mais de 170 títulos! Isso para mim era uma mina de ouro, raramente se encontra um ilustrador tão profícuo, com uma variedade ampla de títulos nacionais e estrangeiros.

Seu livro apresenta inúmeras ilustrações do Poty com ideias, intenções e traços variados. Como ele trabalhava a relação entre o texto e suas ilustrações em cada obra?

FN: Não há um jeito único e é isso que torna esse estudo tão rico. Há livros em que ele aborda uma questão narrativa, mostrando um segmento da história e agindo como uma espécie de conarrador ao eleger momentos importantes para ilustrar. Outras vezes ele cria uma espécie de retrato ficcional dos personagens. Há casos, como o do Guimarães Rosa, em que foram criadas imagens bem mais simbólicas. O Poty conversou diretamente com o autor e recebeu instruções bem precisas. A gente sabe que o Guimarães era cheio de segredos e simbolismos. Tem uma declaração do Poty sobre isso em que ele revela que o Guimarães pediu em um trecho o desenho de uma esfinge com uma ampulheta, noutro lugar ele pediu peixes. Eram peixes caindo em cima de fios de luz. E o próprio Poty não sabia explicar o porquê. Ele fazia, claro, uma leitura do texto e, quando era possível, ele ia conversar com o escritor. Para fazer “Canudos”, do Euclides da Cunha, ele visitou a região várias vezes. Era um desenhista que fazia muita investigação de campo.

Você mencionou que muito da fama do Poty em Curitiba se deve aos inúmeros murais espalhados pela cidade. Como é o estilo da arte dele nesses murais? É muito diferente do estilo das ilustrações?

FN: Ele era um artista com ampla variedade de estilos. Não que criasse um estilo para cada livro, mas ele ia ampliando sua gama de estilos e esquemas visuais. O tipo de linha que utilizava, o tipo de traço. É até engraçado para aqueles que conhecem o Poty pelos murais, pois se surpreendem ao ver suas ilustrações. Vários alunos me falam: “Nossa, mas isso nem parece do Poty!” Ele é um artista com uma multiplicidade de estilos. No livro coloco imagens do primeiro mural público que ele criou, feito em 1953, que é o da praça Dezenove de Dezembro, data da emancipação política do estado do Paraná. Ele tem um estilo que seria bem próximo das ilustrações, por exemplo, do João Abade ou de “Dias Perdidos”. O mural carrega uma lógica narrativa, ilustra as distintas fases econômicas do Paraná passando pelo garimpo, pelo tropeirismo, pelo processo de evangelização pelos jesuítas, mostrando a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, que era Curitiba, e chega até o Zacarias de Góis e Vasconcelos, que foi o primeiro presidente da província. São cenas intercaladas, e essa é a lógica que organiza muitos de seus murais, especialmente os de caráter histórico. O mural no Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná conta a história das ciências, mostra Da Vinci, Newton e outros personagens importantes. O Poty vai agrupando símbolos e elementos que contam essa história de estilos que começa com o mais realista, que é de 1953, e vai assumindo uma linguagem mais sintética com o tempo. Mais tarde, ele passa a desenvolver murais em cimento. Ele fazia primeiro com moldes de madeira, depois de isopor, riscava com as próprias mãos, cortava com umas faconas bem toscas, ia criando os elementos e as placas que juntas se tornavam um mural maior. Ele tem murais em outras cidades do Brasil, como em São Paulo, no Memorial da América Latina, e também um no Algarve, em Portugal, e até um em Paris.

Em seu livro vemos múltiplas faces do artista e uma grande variedade de estilos de ilustração. Como se dava a seleção de técnicas a serem utilizadas em cada trabalho e como foi o desenvolvimento do estilo de Poty ao longo dos anos?

FN: Ele usa muito o que na técnica do desenho chamamos de hachura, que são repetições e cruzamento de linhas. Na linguagem dos desenhos essa técnica normalmente é utilizada na criação de luz e sombra. Ao longo da trajetória do Poty é como se os traços e as hachuras fossem adquirindo autonomia. Deixam de ser elementos para a criação de sombra e passam a ser usados para destacar o personagem contra o fundo. Por vezes têm uma função também composicional, para criar tensões, equilíbrios, movimento ou até desequilíbrios. A ilustração que ele criou para “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, é um bom exemplo disso. Há uma tela com a imagem do Sol e uma série de linhas ao redor, como se a energia solar estivesse se difundindo. Isso é feito com a intenção de criar uma situação dramática. Junto a isso existem também algumas referências imagéticas: ele faz um desenho que é uma “Pietà”, dando à ilustração um caráter universal. No começo da década de 1970, o Poty faz uma viagem para o Xingu, junto com os irmãos Villas-Bôas e o Noel Nuteus, na qual ele cria uma grande série de desenhos in loco. É um trabalho de antropólogo visual. Alguns são superdetalhistas, outros muito sintéticos. Ele trabalha essa questão geométrica da arte indígena e a transporta para o universo rural. Como resultado temos, por exemplo, aquela capa da reedição do “Corpo do Baile”. A capa tem os personagens de frente e na contracapa os personagens estão de costas. Ali é um desenho totalmente sintético. O Poty se forma no segundo modernismo brasileiro, então ele faz muita experimentação. Algumas vezes criando linhas bem caóticas, outras vezes criando desenhos bem simples onde uma linha já mostra tudo. Em “O Púcaro Búlgaro”, por exemplo, ele cria quase uma caricatura com linhas muito simples. Lá ele não as carrega com hachuras. A questão do estilo é ligada ao modo como o ilustrador conta uma história. Uma história é uma coisa que acontece, e a pesquisa do meu livro investiga exatamente qual ação ele escolheu em cada caso. Ele ilustra o “Moby Dick”, por exemplo, como um romance de aventuras. “Moby Dick” é um livro gigantesco, que pode ser interpretado das mais variadas formas: como um livro simbólico, como um modelo ecológico… Mas ele interpreta como um romance de aventuras. Isso acontece também por influência do filme, que foi lançado muito próximo ao momento em que ele trabalhou nas ilustrações. Então são essas “contaminações” que a ilustração literária acaba fazendo. Ela acaba criando uma mistura, pegando referenciais de outros lugares. É como colocar a “Pietà” dentro do romance da Rachel de Queiroz. É abstração literária.

Como era o processo de imersão que o Poty fazia para se aproximar dos autores e das histórias e inserir suas ilustrações de forma que conversassem com a obra?

FN: Geralmente os contatos eram feitos pelas editoras. O José Olympio fez muito isso de colocar o Poty em contato com os escritores. Ele ficava amigo do autor e gostava muito de viajar. Então conheceu vários lugares e aproveitou para fazer algumas imagens. Isso é visível no caso de “Canudos”. Ele fez os desenhos das espécies de vegetais do local. Ele era esse tipo de desenhista compulsivo que criava o tempo todo. Não à toa temos agora esse acervo tão grande no museu. Eu acho que a lógica dele era a de um trabalho imersivo e sem pressa, como quem sempre faz a pergunta: “Como posso agregar esse material visual ao livro ficando dentro do mesmo universo ficcional?” É por isso que ele se torna tão interessante, mesmo que o desenho às vezes fale coisas diferentes do livro, afinal, esse trabalho é sempre um diálogo e no diálogo você não só repete o que o outro está dizendo, mas faz também a sua própria contribuição. Um exemplo disso é o trabalho em “Capitães da Areia”. O Jorge Amado tem uma mentalidade da época que faz com que ele naturalize no livro situações de abuso e retrate personagens homossexuais de forma bem condescendente, justificando o comportamento homossexual como uma carência. E a ilustração do Poty entra como um contraponto, é uma ilustração muito doce. Por vezes há casos como o de “O Estrangeiro”, do Plínio Salgado; no começo da trama o protagonista fica fascinado com um abacaxi, ele nunca tinha visto um abacaxi. E esse abacaxi aparece o tempo todo nas ilustrações do Poty. Se não me engano, o livro tem duas menções à fruta, mas o Poty a transforma naquele sonho recorrente. A ilustração tem um parentesco com a adaptação. Toda adaptação transforma uma obra em outra, com as características da mídia para a qual está sendo adaptada. Não é diferente com a ilustração. Ela cria um comentário, ela se afasta da obra, cria uma espécie de segunda camada para o texto. A única diferença é que a ilustração está fisicamente junto ao texto. Você lê e vai encontrando as ilustrações, descobrindo-as à medida que avança na leitura.

O Poty também escreveu quadrinhos no início da sua carreira; como foi a relação dele com essa mídia e qual a importância dela na sua obra?

FN: Foi providencial que o livro tenha sido lançado agora no final de 2023, porque 2024 marca o centenário do Poty. Haverá exposições em Curitiba e outros lugares do país. Eu estou participando de uma curadoria junto com a professora Maria José Justino para uma exposição do Poty que vai abrir aqui em Curitiba, no Museu Oscar Niemeyer, no final de março, já que 29 de março marca não só o aniversário de Poty como também o de Curitiba. E para essa exposição recebemos um acervo de João Lazzarotto, irmão de Poty, que doou cerca de 4.800 desenhos. Investigando o acervo do doutor Lazzarotto notei que foram os quadrinhos que deixaram o Poty conhecido na cidade. É preciso lembrar que Curitiba naquela época era um ovo, uma cidade muito provinciana. O pai dele tinha um restaurante e algumas pessoas importantes o frequentavam, inclusive o governador do estado, que na época era chamado de interventor, Manuel Ribas. Ele viu esses desenhos, deu uma ajuda para o Poty e o mandou para o Rio de Janeiro para estudar. No livro eu mostro um pouco da obra “Haroldo, o Homem-relâmpago”, um quadrinho que era imitação dos quadrinhos estadunidenses, tendo uma estrutura parecida, só que situando a história em Curitiba. Ele fez também uma versão do “Frankenstein”, um quadrinho chamado “Ilha Misteriosa”, que foi um dos que tiveram mais volumes. Quase nenhuma dessas obras está terminada, ele não finalizava seus quadrinhos. E era tudo feito na folha de papel de uma forma muito simples. Como professor, eu vejo muitos estudantes entrarem para as artes visuais por causa dos quadrinhos. Já naquela época, ele parte dessa mídia de massa e isso o leva a começar a desenhar. São duas coisas que definem a formação do Poty: o quadrinho e o cinema. Ele assistia aos filmes e desenhava cenas inspiradas, e isso ajudou a formar o imaginário dele. Eu não sou um grande leitor de quadrinho, mas fico fascinado com o potencial dessa mídia de criar interesse pelas artes visuais. Tem gente que entra nas belas-artes por causa do quadrinho e acaba descobrindo outras formas artísticas; outros de fato viram quadrinistas. É uma arte muito importante para as crianças e os jovens e é também um gênero que tem mudado muito e vem sendo cada vez mais reconhecido como uma forma artística. Afinal, o quadrinho é o grande exemplo da junção das artes visuais com a literatura. Acaba sendo lógico que um artista formado nos quadrinhos se torne um grande ilustrador.

O que você espera que o seu livro ensine ao leitor, para além da importância e qualidade artística do Poty?

FN: Eu espero que esse universo da ilustração possa ser reconhecido como uma atividade artística de pleno direito. A ilustração é até hoje vista com certa reserva, principalmente nas academias de arte. Gostaria que esse livro ajudasse a incentivar a chegada de mais e melhores ilustradores. A ilustração tem uma capacidade muito importante de atrair o leitor, e eu acredito que um povo que lê mais é um povo mais inteligente. Na época em que o Poty começou, a ilustração era uma coisa para livros adultos e considerada como algo que valorizava o livro. Infelizmente isso se perdeu e ela passou a ser associada exclusivamente à literatura infantojuvenil, que é tida como uma literatura de menor importância. Eu, que convivo muito com jovens adultos, afirmo que uma figurinha faz muita diferença. As pessoas gostam de desenhos nos livros e não têm uma acepção acrítica da ilustração. Eu cresci lendo a Série Vaga-lume, com livros ilustrados. Havia obras de cuja história eu gostava, mas discordava das ilustrações. E outras em que a ilustração me ajudava a ler o livro e acrescentava riqueza ao produto.

 

 

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