A biografia das mulheres
A trilogia 'Imagens da Mulher no Ocidente Moderno', de Isabelle Anchieta, mostra mulheres transgressoras e suas respectivas desconstruções
26/04/2021
Por Eduardo Nunomura
No século XIV, Giovanni Boccaccio, na monumental obra Decamerão, retrata a história de jovens que se abrigam em um castelo para tentar fugir da peste negra e passam a narrar cem contos. Em meio a um ambiente de incertezas, as feiticeiras eram representadas como uma alternativa de salvação. Mas também foram vistas, pelo poeta florentino e pela sociedade da época, como mulheres pactuadas com o diabo, ao contrário dos homens feitos à semelhança de Deus. Feiticeiras tornaram-se bruxas, mas foi só dois séculos depois que os caldeirões passaram a ser representados visualmente, uma imagem que perdura até hoje.
O que poucos sabem, e esta é uma das teses da jornalista e socióloga Isabelle Anchieta, é que o caldeirão da bruxa foi “a maior ‘exportação’ feita pelo Brasil de um estereótipo internacionalmente reconhecido”.
A trilogia Imagens da Mulher no Ocidente Moderno (Edusp), fruto do doutoramento de Isabelle na Universidade de São Paulo (USP), procura desvendar como estereótipos relacionados às mulheres se universalizaram entre a Idade Média e a Modernidade. A autora foi atrás de livros e outros escritos, muitos deles de difícil acesso, para mostrar que falsos imaginários sobre as mulheres foram construídos por meio de um processo de circulação e retroalimentação de produções visuais.
A partir de imagens de Hans Staden, um mercenário alemão que realizou expedições da Espanha e de Portugal e se tornou um dos primeiros etnógrafos dos indígenas brasileiros, a autora percebeu a presença central do caldeirão utilizado pelas mulheres tupinambás canibais. Mantido sob cativeiro por nove meses, Staden sobreviveu para relatar sua aventura nos trópicos. O impressor e gravador flamengo Théodore de Bry percebe o interesse do público por essas narrativas e, com um traço mais refinado, recoonta a história dos rituais canibais entre as tupinambás. As imagens ganham a Europa e são, sorrateiramente, incorporadas ao imaginário das bruxas, que antes disso não usavam esse apetrecho.
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A trilogia, que “é um pouco a biografia de todas as mulheres”, destrincha fórmulas típicas de controle social da natureza (com as imagens de bruxas e do sobrenatural), das instituições e da sexualidade (Maria e Maria Madalena) e de si mesmo, a partir da lógica de um culto a estéticas impostas pela indústria cinematográfica. A socióloga provou esta última parte da tese, que virou o Livro 3 da trilogia, a partir da análise de cerca de 80 filmes dos anos 1940 e 1950, e deteve-se sobre a representação de atrizes que serão “veneradas como imagens de culto”.
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Leia o texto original na íntegra na Carta Capital