Tolstói da Silva, Górki do Nascimento
Obra-prima de nossa história cultural conta como autores e leitores dos tempos do Estado Novo se miraram no espelho da literatura russa
01/04/2019
Por Sérgio Alcides
Parece que ainda existe quem tema a chegada dos russos. Mas eles já chegaram faz tempo – pelo menos às livrarias. Debaixo de um calor nada siberiano, a literatura russa tem sido lida no Brasil desde finais do século 19. Por vezes, a leitura ganhou características febris, a ponto de ser tomada como um espelho improvável, por maiores que sejam as diferenças entre mujiques e jagunços, balalaicas e cavaquinhos. Foi assim com as “febres de eslavismo” que marcaram a Era Vargas, à sombra do tsar gaúcho, autocrata de todos os Brasis. Agora, no contexto de uma nova onda de traduções do russo, Bruno Barretto Gomide narra a saga dessa aproximação, em Dostoiévski na Rua do Ouvidor: A Literatura Russa e o Estado Novo .
Trata-se de uma obra-prima da história cultural no Brasil. Caudaloso e vibrante como um romance das estepes, mas redigido no nosso melhor vernáculo, o livro procura explicar como pôde a intelectualidade brasileira entre 1930 e 1945 buscar na literatura russa – bem mais que um modelo – uma fonte para entender melhor o próprio país. Para isso, o autor se distancia de qualquer pressuposição de identidade: sua primeira medida é pisar fora do velho tópos da comparação entre as extensões incultas a leste dos montes Urais e ao sul do rio Amazonas. Só assim seria possível verificar como o clichê da “alma russa”, que fazia de Dostoiévski “o mais russo de todos os russos”, instigava também a confiança na existência coesa e substancial de uma correspondente “alma brasileira”.
O tema de Gomide são as duas “febres russas” que marcaram a modernização abrupta e autoritária do Brasil. A primeira coincidiu com a Revolução de 1930, quando as traduções francesas antes lidas por aqui começaram a ser traduzidas para o português. A segunda marcou os últimos anos do Estado Novo e a redemocratização do país, sob o impacto das vitórias da União Soviética contra as forças nazistas, no front oriental da Segunda Guerra. A minuciosa pesquisa recupera o movimento editorial inovador e o intenso debate crítico que se espalhou pelas páginas dos principais jornais do país, a ponto de o “texto russo” se tornar uma referência fundamental da cultura brasileira, num momento de instalação do modernismo no establishment e desenvolvimento do próprio romance brasileiro de vanguarda.
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Onomástica russo-brasileira
Gomide levanta, além do movimento editorial e crítico, o reflexo – digamos – onomástico da influência russa. Surgiram gerações de Máximos e Leões, atestando o amor de pais e mães brasileiros por Górki e Tolstói. Compreensivelmente, Dostoiévski não foi homenageado da mesma forma, porque seu prenome (Fiódor) era então grafado aqui à maneira francesa (Fedor). O campeão das homenagens, pelo que a pesquisa assinala, foi mesmo o autor de Guerra e Paz, como atestam os registros encontrados de nomes como Tolstói Furtado de Oliveira, Tolstói Coelho de Souza, Tolstói de Carvalho Melo, entre vários outros Tolstóis disso e daquilo.
Ao mesmo tempo, os editores se atrapalhavam com a transliteração dos nomes cultuados: Leão, Leon ou Liév? Dostoiewski ou Dostoievsky? Turgueniew ou Turgeneff? E inventavam tradutores russos como Ivan Petrovitch e J. Jobinsky para escamotear a origem indireta das suas versões – descoberta que Gomide atribui à tradutora e pesquisadora de história da tradução Denise Bottmann.
O Brasil era – ou já era – “russófilo e russófobo em doses iguais”. Recém-saído da letargia da República Velha, o país se dava conta aos poucos da polarização global trazida pela Revolução de 1917.
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