Clarice Lispector é uma bruxa que encanta
E o leitor nunca mais deixará de ser seu
8/12/2020
Por Leila Kiyomura
Clarice
veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial.
Essencial era Clarice viajando nele.
Assim Carlos Drummond de Andrade definiu Clarice Lispector (1920-1977). E tantos outros escritores e pesquisadores vêm tentando compreender o seu mistério. No seu centenário, completado nesta quinta-feira, dia 10, a escritora continua indefinível. Quem começa a ler Clarice Lispector vai passar a vida com seus livros nas mãos. “Será fisgado”, como define a professora Nádia Battella Gotlib, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, pioneira nas pesquisas sobre a vida e obra da escritora. “Comecei a ler Clarice quando era estudante de Letras na Universidade de Brasília (UnB), nos anos 1960. Ganhei de presente o livro Laços de Família de um professor e esse livro me intrigou. Fui fisgada.”
A leitora Nádia passou a pesquisar, estudar e escrever. Publicou Clarice: Uma Vida Que se Conta, da Editora Ática, em 1995. E a sua sexta edição foi revisada e aumentada pela Edusp em 2009. Um ano antes, também pela Edusp, lançou Clarice Fotobiografia.
A professora Nádia vai com Clarice Lispector mundo afora através de artigos, seminários e, desde março, sob a forma de lives e webnários, apresentados em instituições no Brasil e no exterior, da Inglaterra à Ucrânia. “O centenário acontece, infelizmente, em meio à pandemia. E, de fato, num momento de descaso pelo setor cultural. Por outro lado, existe o meio digital, que viabiliza a comunicação. Já participei, até o momento, em eventos de dez países.”
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Na pesquisa para escrever Clarice: Uma Vida Que se Conta, Nádia examinou textos de gêneros narrativos diversos. “Ela escreveu crônicas, contos, romances, literatura infantil, páginas femininas, cerca de 450. E também cartas, além de um livro de lendas brasileiras, uma conferência, uma peça de teatro, um artigo sobre tradução e entrevistas, enquanto entrevistadora, para periódicos cariocas.”
Nesse universo, no entanto, há temas recorrentes. “Um deles é a própria Clarice, que menciona ‘a procura da coisa’. De fato, personagens, sobretudo mulheres, em certos momentos são levadas pela linguagem a um território outro, que não é o da lógica, mas o que ela chama de ‘atrás do pensamento’, em que experiências singulares e complexas afloram, de encantamento e nojo, paradoxalmente envolvidas num mesmo halo de vida e morte, como se aí se concentrasse o sentido da condição humana, um paraíso infernal ou um inferno paradisíaco, o ‘âmago da coisa’, matéria viva pulsando”.
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Ler Clarice na adolescência e se dedicar a decifrar sua vida e obra é igualmente a história da professora Yudith Rosembaum, também da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Eu queria investigar a escritora que me arrebatou aos 16 anos com o conto Amor, do qual nunca me distanciei. É um texto matricial da visão de Clarice sobre o modo como somos enlaçados pelas redes de afetos e papéis”, explica. “Desde então, são quase 30 anos de convívio com a autora e ainda há muito a descobrir.”
A professora, que escreveu Metamorfoses do Mal: Uma Leitura de Clarice Lispector, publicado em 1999 e relançado pela Edusp em 2006, e Clarice Lispector, em 2002, pela Publifolha, já está se preparando para lançar o terceiro livro.
O trabalho de Nádia e Yudith é referência para pesquisadores da obra clariciana do País e do exterior. “Não tenho dúvida de que os textos de Clarice, como os de grandes autores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, entre outros, deslocam seus leitores de lugares conhecidos e habituais, problematizam o que o sujeito sabe de si e do mundo. E despertam, sim, reflexões novas”, destaca Yudith. “A literatura de Clarice provoca, instiga, desmonta o que tende a se cristalizar. Ela pede um leitor aberto às inovações da linguagem e às rupturas com a lógica, com as crenças e os valores estabelecidos como ‘naturais’.”
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