O resgate da história popular dos grandes poemas épicos de Homero

Evitando o velho slogan da “versão definitiva”, “Homero Portátil” traz uma adaptação acessível de cantos da “Ilíada” e da “Odisseia”

Em Edusp

Por Divulgação

Traduzir a obra de Homero é uma empreitada extremamente desafiadora. Antes mesmo de considerar a complexidade da tradução do grego e da reorganização dos cantos de acordo com a métrica poética de outro idioma, é essencial definir exatamente como essa adaptação será realizada. Tradicionalmente apresentadas em versos que emulam o ritmo das declamações de sua época, a “Ilíada” e a “Odisseia” também já ganharam versões em prosa, que simplificam a narrativa e a tornam mais acessível para muitos leitores.

Ao longo de sua carreira acadêmica, o professor André Malta enfrentou esses desafios com frequência. Estudioso de Homero por 25 anos ininterruptos, ele encontrou na tradução uma forma de enriquecer sua interpretação dos poemas épicos creditados ao grego. Traduzir os versos não era seu objetivo final, mas sim uma ferramenta para permitir um entendimento mais amplo e completo da poética homérica. O resultado desse processo pode ser verificado no livro “Homero Portátil: Os Principais Cantos da ‘Ilíada’ e da ‘Odisseia’ Traduzidos em Redondilhas”, que reúne traduções de quatro cantos da “Ilíada” e oito da “Odisseia”.

Malta opta por transformar cada um dos hexâmetros de Homero em duas redondilhas maiores. Ao escolher esse formato, o autor encontra uma solução para as diferenças rítmicas entre os versos em grego e em português, empregando um formato que se encaixa melhor em um relato narrativo. Além disso, ele busca se diferenciar das traduções mais comuns, tipicamente feitas em decassílabos, dodecassílabos ou outros tipos de versos nobres, amenizando a elevada formalidade da poesia épica e resgatando um pouco de seu contexto histórico, em que se configuravam como contos populares narrados em público.

O autor explica que poemas épicos como a “Odisseia” e a “Ilíada” não eram percebidos nem consumidos como hoje em dia. Na época dos gregos antigos, esses épicos eram frequentemente declamados por aedos e tinham grande alcance popular. Com suas qualidades narrativa e poética, os poemas eram pilares da cultura grega. O aspecto oral e popular, que se perdeu no contexto moderno, motivou a produção de “Homero Portátil”, em um esforço para resgatar essas características.

Quais as principais razões que o levaram a optar pelas redondilhas nessa tradução dos versos de Homero?

André Malta: A principal razão foi explorar um elemento importante da tradição poética em língua portuguesa: a redondilha – ou “redondilha maior”, para diferenciar da “redondilha menor” –, que é o verso de sete sílabas que a gente costuma usar em uma chave mais pedestre. Tem uma cara popular e aceita bem a narrativa e o relato. Homero costuma ser traduzido em metros nobres, como o decassílabo ou o dodecassílabo, mas eu queria experimentar alguma coisa que tirasse um pouco da elevação característica da poesia épica. Não que a elevação tenha desaparecido na minha tradução; ela continua lá, por causa de vários outros elementos da poesia homérica aos quais quis me manter fiel, mas a redondilha garante certo rebaixamento formal.

Além da versão que Fernando Pessoa elaborou de “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, houve outras inspirações para seu processo de tradução, nesse projeto, ao longo dos anos?

AM: Eu já admirava “O Corvo” na tradução do Fernando Pessoa desde a minha adolescência, mas foi só no final da minha graduação em grego, quando decidi tentar traduzir o primeiro canto da “Ilíada”, que voltei ao poema para entender como funcionava a sua metrificação. E aí vi que a justaposição de duas redondilhas poderia ser uma solução boa para cada hexâmetro do original. Não consegui emular a qualidade rítmica da versão do Pessoa, mas criei um método que para mim era minimamente confortável e que no fim se alimentava de toda a minha experiência como leitor assíduo de poesia. Podia ser a redondilha que eu tinha lido na lírica de Camões, no teatro de Calderón de la Barca ou em João Cabral de Melo Neto. Ou em dois poemas do Drummond que são exemplos magníficos do uso da redondilha e que estão no livro “Claro Enigma”: “A Mesa” e “Cantiga de Enganar”. Poemas assim sempre me impressionaram mais do que sonetos ou épicos como “Os Lusíadas”.

Quando você menciona o aspecto popular e oral da obra de Homero, a que características está se referindo? Você afirma que há parentesco da literatura de cordel e do rap com Homero; poderia explicar essa relação?

AM: A obra de Homero não era para os antigos essa poesia restrita a poucos que é para nós hoje. Ela era consumida pela maioria das pessoas porque combinava várias qualidades diferentes. Além de trazer duas histórias muito bem construídas, apresentava personagens cativantes e uma visão complexa do mundo. Ainda assim, o fator decisivo para sua popularidade era o meio pelo qual era transmitida: ninguém lia Homero, todo mundo ouvia Homero. Era isso que garantia uma imensa difusão dos seus poemas. Homero era popular porque representava excelente poesia narrativa e porque se tratava de poesia oral. Outras epopeias da época também eram orais, mas não se tornaram igualmente populares por não terem a mesma excelência. Em séculos mais recentes, temos exemplos em prosa e em verso de narrativas que conseguiram ter uma excelência próxima da de Homero, mas que não alcançaram o mesmo poder de difusão, porque já eram literatura, letra impressa, e não mais “palavra alada”, para usar uma expressão homérica. Na atualidade, o cordel e o rap reproduzem essa característica da narrativa oral e, nesse sentido, estão mais próximos de Homero, pelo alcance amplo típico da música, que não depende da escrita e da leitura. Mas em geral não têm a mesma profundidade. Por outro lado, pela extensão e pela ambição, e também por certos detalhes técnicos, romances como “Guerra e Paz”, de Tolstói, e “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, são o que temos de mais próximo a Homero. A diferença radical é que eles não têm larga inserção popular.

Hoje existem múltiplas formas de acessar os épicos de Homero. Você considera algum formato mais adequado?

AM: O mais adequado é o mais confortável e convidativo para cada leitor ou leitora. Essa é a vantagem de multiplicarmos os formatos e as versões, e não só de Homero, claro. E multiplicarmos sem nenhum tipo de preconceito. Li a “Odisseia” inicialmente na tradução em prosa do Jaime Bruna e até hoje tenho um carinho especial por traduções assim de Homero, mesmo que tenham caído em desuso. Espero que voltem a ser feitas. Esse tipo de tradução é imbatível no sentido de aproximar Homero da prosa de ficção, o formato mais popular entre nós. Na nossa cabeça, narrativa é algo feito em prosa, não em verso. Uma tradução em prosa bem-feita permite um contato com Homero que a melhor tradução em verso não vai proporcionar. Esse é o efeito buscado, por exemplo, pela tradução portuguesa do Frederico Lourenço, que na prática é uma versão que explora as vantagens de darmos as costas à poesia de Homero. Homero não é prosaico, é alta poesia, mas para muita gente não há nada melhor numa versão do que poder esquecer isso e se concentrar na progressão da narrativa. Dito isso, é muito bom que o mercado ofereça cada vez mais alternativas, da prosa mais fluida ao verso mais elaborado, sem insistir naquele slogan velho da “tradução definitiva”.

Por que você escolheu traduzir quatro cantos da “Ilíada” e oito da “Odisseia”?

AM: Estudei Homero de forma ininterrupta durante 25 anos. Ao longo desse tempo, estive sempre pensando em como traduzi-lo, mas nunca com o propósito de verter os poemas na íntegra. Aliás, esta foi a pergunta que mais ouvi: “Por que você não traduz tudo?” A verdade é que para mim a tradução era uma atividade importante, mas subordinada ao estudo. Eu traduzia longos trechos para trazer subsídios para minha interpretação e torná-la mais rica. E foi através da interpretação que cheguei a esse total de doze cantos, os quatro da “Ilíada” e os oito da “Odisseia” que apresento no “Homero Portátil”. Os da “Ilíada” têm a ver com o tema da perdição, que estudei no meu doutorado, e os da “Odisseia”, com o tema da astúcia e da identidade, que estudei no meu pós-doutorado. Só que, como a poesia homérica é muito variada, são episódios que acabam exemplificando também seus diferentes enfoques narrativos e temáticos. Acabei percebendo que eles poderiam desempenhar bem o papel de introduzir as pessoas no universo homérico, que é muito vasto. Se o Canto 1 da “Ilíada” é ágil e dialogado, com ação humana e ação divina, o 9 é superdeclamatório e restrito ao plano terreno, sem deixar de ser igualmente intenso. Já o 16 é um canto cujo foco está na ação bélica e na morte de um grande personagem, enquanto o 24 tem um ar elegíaco e um ritmo mais lento. Na “Odisseia”, a gente pode deparar com passagens fantasiosas muito diferentes entre si, como a descida ao mundo dos mortos no Canto 11 e o encontro com o ciclope no Canto 9, ou com trechos dialogados, em chave mais realista, de grande sofisticação, como no Canto 14 e no 19. O retrato do filho de Odisseu, no Canto 1, e o do pai do herói, no Canto 24, são belíssimos, sem falar das muitas leituras possíveis decorrentes da participação do cantor cego, no Canto 8, ou do jogo de esperteza entre Odisseu e Atena, no 13. Homero permanece quase sempre num nível muito alto, sem nos entediar com mais do mesmo. Meus “cortes” mostram isso, embora eu estivesse pensando originalmente na eleição desses cantos com base nas grandes análises que estava redigindo.

Qual foi o intuito que o levou a incluir no livro um ensaio com a abordagem da moralidade homérica na “Ilíada” e na “Odisseia”?

AM: O ensaio sobre a moralidade homérica, que vem no final do livro, tem um propósito didático: fornecer em cerca de vinte páginas uma leitura que amarre os muitos elementos que formam a “Ilíada” e a “Odisseia”. Como já comentei, estudei Homero por mais de duas décadas e publiquei alguns livros sobre ele. O ensaio é uma espécie de súmula da minha visão em um formato mais ensaístico, sem notas de rodapé. Não é simples entender que sentido podemos extrair de poemas nos quais deuses e heróis agem de uma forma que não associamos às nossas ideias correntes de “deus” e “super-herói”. Há muitas coisas brutais; também há outras comoventes. Há um universo aparentemente caótico e sem sentido na “Ilíada”, e um universo que aposta no restabelecimento final da ordem na “Odisseia”. É possível reduzir tudo isso a uma mitologia diluída e juvenil, ou a uma prosa que requente as obsessões acadêmicas das últimas décadas. Tentei fugir desses extremos.

Como a noção de heroísmo é representada nas obras de Homero? E, para você, quais elementos da “Ilíada” e da “Odisseia” ainda ressoam no mundo contemporâneo?

AM: É uma visão de heroísmo diferente da que vem massificada, por exemplo, pelo audiovisual estadunidense, porque o herói não é necessariamente um defensor do bem e da justiça. Héracles, ou Hércules, para os latinos, que é a grande figura heroica do mito grego, até tem esse lado que chamamos de “civilizador”, mas ele também pode ser monstruoso. Aquiles é grande na “Ilíada” porque é inflexível e selvagem. Odisseu é um justiceiro impiedoso na chacina final da “Odisseia”. Eu diria que são heróis, em certo sentido, menos idealizados, e isso sempre é capaz de produzir identificação, porque o humano é a soma de qualidades contraditórias. Para citar outro exemplo: Medeia, na tragédia homônima de Eurípides, mata os próprios filhos para se vingar de Jasão, algo impensável para nós hoje na construção de uma grande heroína. Mas, na peça, ela não se torna menor como personagem por cometer esse ato hediondo, pelo contrário. Na literatura contemporânea, continua a haver espaço para esse tipo de heroísmo mais complexo e perturbador, e por isso Homero nunca deixa de ser uma referência fundamental. Seus valores são, sim, muito diferentes dos nossos, do ponto de vista histórico, mas nas grandes realizações artísticas há uma base profunda que atravessa tempo e espaço, insistindo em ressoar. Quem lê pensa: “Não é meu mundo, mas me reconheço nessas emoções e ações”.

Você tem planos de continuar traduzindo cantos da “Ilíada” e da “Odisseia” da mesma forma que fez com os de “Homero Portátil”?

AM: Não tenho. O ano de 2018 foi meu último dedicado ao estudo e à tradução de Homero. Desde então tenho me voltado a outros temas e à tradução de textos de Platão e Aristóteles. Não que eu tenha me cansado de Homero, ele é que se cansou de mim, e com razão. A poesia homérica está muito à frente de nós e precisamos nos esforçar continuamente para estar à sua altura.

 

 

 

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