A importância do Brasil para o desenvolvimento das ciências sociais francesas
As ciências sociais de Brasil e França estão entrelaçadas e revelam uma história rica em trocas nem sempre igualitárias
Em Edusp
Por Divulgação
No período de surgimento das primeiras universidades brasileiras, um grande fluxo de cientistas sociais europeus, sobretudo franceses, chegava ao país para realizar suas pesquisas de campo e lecionar. Era um ambiente que possibilitava um bom suporte financeiro e permitia que esses jovens evitassem a velha guarda francesa, a qual bloqueava seus avanços.
Ian Merkel analisa esse fascinante período, no qual a história do Brasil e da França se mesclou e as trocas entre intelectuais dos dois países criavam um momento fértil para as ciências sociais e para o desenvolvimento do conhecimento.
“Termos de Troca: Intelectuais Brasileiros e as Ciências Sociais Francesas” explora a história de como as ciências sociais francesas foram transformadas pela vivência desses pesquisadores no Brasil, convida-nos a olhar além da eurocentralização e revela o efeito da passagem dos intelectuais franceses pelo país.
O que o motivou a estudar as relações entre cientistas sociais franceses e intelectuais brasileiros?
Ian Merkel: A princípio eu queria escrever uma história intelectual do Brasil no século XX, particularmente de São Paulo. O livro “Fin-de-Siècle Vienna: Politcs and Culture”, de Carl Schorske, foi importante para pensar a cidade em vários aspectos: políticos, culturais e intelectuais. Tendo uma formação prévia em estudos franceses, o que me marcou foi justamente a história do que seria a São Paulo global e sua conexão com os intelectuais franceses das ciências sociais. Comecei lendo trabalhos de colegas brasileiros sobre esse período e acabei deparando com toda essa historiografia das ciências sociais.
O que motivava esses intelectuais a vir para o Brasil tão jovens e a realizar pesquisa de campo tão longe de casa?
IM: É preciso lembrar que esses franceses foram ao Brasil no início de sua carreira acadêmica, eles não tinham nem mesmo doutorado. Na maior parte do tempo eram agrégés, tinham um diploma que permite o ensino superior, e o Brasil era a primeira oportunidade que tinham para trabalhar como professores. Isso fez com que as interações com os intelectuais brasileiros fossem de ajuda mútua e intercâmbio institucional; temos que nos lembrar da importância de instituições como a Sociedade de Etnografia e Folclore, liderada por Mário de Andrade, e a Associação dos Geógrafos Brasileiros. Acontecia também o intercâmbio intelectual. Tinha um filósofo no início da USP, João Cruz Costa, que possuía uma biblioteca imensa, frequentada por esses jovens pesquisadores. Então existem várias maneiras de responder a essa pergunta. A primeira motivação, e talvez a principal, era a questão da oportunidade. Temos que lembrar que isso acontece no início da USP, nos anos 1930, durante a Grande Depressão. Eram poucos os postos de trabalho disponíveis nas universidades francesas. Tem um famoso livro do Paul Nizan, que foi colega de Claude Lévi-Strauss e de Jean-Paul Sartre, que fala dos cães de guarda da antiga geração que estavam bloqueando o progresso desses jovens. É um pouco o Zeitgeist da época, mas também vale dizer que as ciências sociais aplicadas e empíricas estavam no seu início no mundo inteiro. O que o Brasil permitia a eles era um espaço em que tinham acesso a certas populações em um país formalmente independente que financiava essas pesquisas e possibilitava um trabalho que de outra forma seria impossível.
Que ideias esses pensadores levaram do Brasil para a França? Como a estadia no país influenciou seu trabalho?
IM: Na questão propriamente intelectual, em termos de troca de ideias, o exemplo mais nítido e óbvio foi o de Roger Bastide, que não só passou quinze anos no Brasil como teve um diálogo importantíssimo com Gilberto Freyre, com Arthur Ramos e com Mário de Andrade. Podemos ver que o pensamento dele inteiro é inserido nesse contexto intelectual brasileiro. Enquanto outros, como o Lévi-Strauss, seriam o contraexemplo. A teoria dele é menos influenciada pelo tempo que ele passou no Brasil do que pelas ideias e pelas estruturas das etnografias de outros pesquisadores que ele conheceu. Mesmo assim, eu tento mostrar no livro quão importante esse momento prévio na Sociedade de Etnografia e Folclore foi para ele.
Você menciona em seu livro que esses intelectuais franceses tiveram um papel importante na criação das universidades brasileiras; como isso ocorreu?
IM: Entre os jovens que analiso mais profundamente, os dois que tiveram maior impacto na institucionalização das universidades foram Roger Bastide e Pierre Monbeig. Eles ficaram mais tempo no país e criaram as disciplinas de sociologia e geografia como conhecemos hoje. No caso de Bastide, ele é famoso por ter formado uma grande geração de sociólogos brasileiros, como Florestan Fernandes, Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza. Fernand Braudel, com a Escola dos Annales, também marcou profundamente a prática da disciplina de história no Brasil, deixando discípulos como Eduardo de Oliveira França e Eurípedes Simões de Paula. Esse impacto é profundo e sentido até hoje.
Na época tínhamos duas grandes universidades: a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade do Distrito Federal (UDF). Ambas contrataram professores franceses, mas com perfis diferentes; o que fez com que essa diferença entre elas existisse?
IM: Essa é uma pergunta importante porque me permite sair um pouco do provincialismo de São Paulo. São Paulo era a nova metrópole, não era o antigo e histórico Rio de Janeiro. A maior parte dos intelectuais internacionais que frequentaram o Brasil no início do século XX preferia ir para o Rio de Janeiro, inclusive os franceses. Essas universidades (a USP e a UDF) foram se formando mais ou menos ao mesmo tempo, ambas tinham essas missões estrangeiras e convidaram franceses para lecionar. Ao Rio foi a antiga geração, já no final da carreira. Franceses com 60, 70 anos e que davam cursos que não eram muito diferentes dos que eles ministravam em casa. Por mais que se interessassem pelo Brasil e por seus pensadores, eles não tinham o mesmo impacto no trabalho desse grupo. Diferentemente dos jovens que foram a São Paulo e ainda tinham tudo por fazer. Estes viam os seus colegas brasileiros não só como amigos passageiros, mas como pessoas que teriam impacto significativo em sua vida.
O período em que ocorre essa troca de conhecimento entre franceses e brasileiros tem influência do modernismo, movimento que traz a ideia de valorização da cultura nacional. No livro você descreve um sentimento de admiração pelos intelectuais franceses; como isso foi possível em um período em que ocorria um movimento intelectual nacionalista?
IM: Isso me faz lembrar uma citação de Mário de Andrade em que ele ofende seus contemporâneos dizendo: “Vocês sabem o que é o macaco, mas não sabem o que é o guariba”. Então acontece um pouco disso, em certas áreas mais do que em outras. A filosofia é uma disciplina muito eurocêntrica. Paulo Arantes acreditava que essa missão francesa tornava o país dependente, quase uma colônia. Eu acho que tem um pouco disso e tento analisar a questão da desigualdade das trocas. Desde o início das universidades brasileiras, a ideia era formar brasileiros não apenas para quadros superiores da vida política e cultural do país, mas também para ser professores universitários. Imediatamente se apresenta a questão de quem é capaz de lecionar essas novas disciplinas em um país que não tem universidade para formar essas pessoas. Então esses estrangeiros são chamados justamente com a missão um pouco irônica de nacionalizar a cultura brasileira. Podemos ser críticos desse fenômeno, mas existem esses dois lados da moeda.
O que fazia com que essas trocas fossem desiguais?
IM: Os termos nunca são iguais, mesmo em situações em que parecem ser. O que tento mostrar no livro é influenciado pela teoria de campo de Pierre Bourdieu: são as diferentes maneiras como o capital financeiro, o simbólico e até o linguístico estão em jogo. Começando pelo linguístico: fora dos países em que é um idioma oficial, o português é uma língua relativamente marginal, que não é lida. Uma anedota que eu conto é que o Arthur Ramos enviava seus livros para o Freud, que simplesmente respondia que não lia o português. Isso é um fato. Tem a questão financeira, o capital econômico; nesse sentido, eu tento complexificar um pouco a narrativa predominante de que o Sul Global seria subjugado ao Norte, porque, como falei, a França tinha pouquíssimas oportunidades de pesquisa de campo para os jovens naquela época. Em São Paulo e no Brasil dos anos 1930, existia um suporte financeiro que permitiu a contratação dos estrangeiros e o financiamento de pesquisas. Mas, no plano simbólico, temos que nos dar conta do fato de que, apesar de serem jovens, esses franceses se beneficiavam de certo reconhecimento; a maneira como foram tratados pela imprensa brasileira e o acesso à elite do país que eles tinham como jovens professores surpreendem. Então, quando se trata de trocas com os intelectuais brasileiros, depende muito de quem falamos. Gilberto Freyre, por exemplo, que já era reconhecido internacionalmente nos anos 1930 e 1940 e traduzido para vários idiomas, era uma espécie de par para eles e era citado assim. Enquanto outros, como Florestan Fernandes, por mais que fossem importantes no contexto deles, não circulavam muito além desse contexto. Temos que olhar caso a caso, mas existem essas desigualdades.
Aproveitando a menção a Freyre, ele chegou a passar um tempo na Europa e, como foi dito, foi traduzido para diversas línguas. Como foi a recepção de suas ideias na Europa?
IM: Freyre é de certa forma um modelo do que poderia ser a circulação brasileira lá fora, examinado de perto por pesquisadores como Cibelle Barbosa, por exemplo. O que é importante ver é até que ponto Freyre foi abraçado no momento de reconfiguração das ciências sociais na França e no momento de descolonização. Muitas pessoas tentaram mostrar a importância metodológica e teórica de Freyre em termos de uma história do cotidiano, a renovação da história econômica e social em paralelo com os Annales. Mas temos que lembrar que não foi somente na França-metrópole que Freyre foi abraçado, mas numa França imperial que ainda tinha colônias na Ásia e na África, e que sua visão era particularmente bem-vinda para pensar além das oposições de colonizador e colonizado.
Na apresentação do livro é mencionado que alguns trabalhos da época viam a América Latina como uma fonte de ideias e práticas relevantes para muito além da região. Esse reconhecimento que a América Latina vem recebendo é recente?
IM: Não é recente. A América Latina, mesmo antes de ser chamada como tal, figura na história global sob vários aspectos, mas sempre posta numa segunda categoria, com exceção de certos pensadores revolucionários cubanos e chilenos, por exemplo. Na maior parte do tempo, os pesquisadores que pensam a América Latina de fora estão mais interessados nos países em que focam as energias do que na importância internacional e global desses países. Isso também ocorre com o Brasil. Esse é o lado bom e o ruim da institucionalização do pensamento social brasileiro: os brasileiros tendem a enxergar seus pensadores num aspecto nacional, quando, na maior parte do tempo, eles transcendem esse contexto. Então, o que tento mostrar no livro é que a aliança com muitos outros pesquisadores ajuda a pensar justamente no quadro internacional ou global desses pensadores, e como exemplo eu me lembro especificamente do Congresso de História Intelectual da América Latina, que acontece a cada dois anos num país diferente. Fico muito contente com essa edição brasileira do meu livro porque ela permitiu coisas que a inglesa não permitia, como a inclusão de fotografias, o que acabou deixando o projeto mais bonito.