Amizade entre Mário e Oswald de Andrade é explorada em novo volume da Coleção Correspondência

A complexa amizade entre Mário e Oswald de Andrade é explorada em detalhes em livro que resgata as cartas trocadas entre os modernistas

Em Edusp

Por Divulgação

Uma das maiores especialistas na obra e na trajetória de Oswald de Andrade, Gênese Andrade foi a responsável pela organização do oitavo volume da coleção Correspondência de Mário de Andrade, publicação da Edusp que reúne as cartas, postais e bilhetes enviados por Oswald de Andrade ao amigo entre os anos de 1919 e 1928.

Em 2008, a autora já abordava o assunto em seu artigo “Amizade em Mosaico: A Correspondência de Oswald e Mário de Andrade”, publicado em Teresa: Revista de Literatura Brasileira.  Agora, em Correspondência Mário de Andrade & Oswald de Andrade (Edusp, 2023), a professora mergulha novamente nos arquivos de Mário para nos apresentar com riqueza de detalhes as nuances da amizade entre os dois.

O livro revela o conteúdo das cartas de Oswald guardadas cuidadosamente por Mário, além do pouco que foi possível recuperar das respostas recebidas por Oswald. O oitavo volume da coleção Correspondência de Mário de Andrade permite ao leitor uma verdadeira viagem por uma lendária amizade, repleta de altos, de baixos e, sobretudo, de muita admiração mútua.

Doutora em literatura hispano-americana pela Universidade de São Paulo (usp), Gênese Andrade é especialista quando o assunto é modernismo: entre outras publicações, organizou Feira das Sextas (Editora Globo, 2004), Modernismos 1922-2022 (Companhia das Letras, 2022) e Arte do Centenário e Outros Escritos (Editora Unesp, 2022).

O que a levou à decisão de iniciar o livro com uma ambientação das viagens de Oswald de Andrade? Qual é a importância dessa decisão para a compreensão do leitor?

Gênese Andrade: A troca de cartas entre escritores e artistas nos anos 1920 era frequente. É sabido que quem mais escrevia e recebia cartas era Mário de Andrade, mas todos os demais modernistas também fizeram isso. Era comum a correspondência mesmo quando eles moravam na mesma cidade, mas, quando moravam em cidades diferentes ou durante as viagens, as trocas se intensificavam. No que se refere ao tema do livro, a maioria das cartas foi enviada a Mário quando Oswald estava na Europa, principalmente em 1923 – ele permaneceu lá o ano todo. Dos 27 documentos que o livro reúne, só um foi enviado, supostamente, de São Paulo. Por isso, a decisão de colocar um roteiro das viagens de Oswald no início do volume, para que se entenda melhor a construção desse diálogo epistolar. O principal tema das cartas são as atividades de Oswald no exterior, relacionadas à divulgação não apenas da própria obra como também da produção dos demais modernistas, e os encontros com os mesmos modernistas na Europa, que coincidiram em temporadas em Paris, principalmente em 1923.

O livro é repleto de cartas, postais, documentos, fotos etc. que são citados como de difícil acesso. Como foi o trabalho para conseguir esses documentos e selecionar o que seria de maior relevância para a obra?

GA: As cartas que Oswald envia a Mário são belíssimas, escritas em papéis variados, timbrados, coloridos, com desenhos… Nunca haviam sido reproduzidas, apenas citadas. Por isso, decidimos incluí-las em fac-símile. A mensagem constrói-se no diálogo entre texto e imagem, e as brincadeiras e os trocadilhos dependem muito desse aspecto visual. Há algumas ainda com trechos e assinatura de outros – como Di Cavalcanti, Victor Brecheret e Sérgio Milliet –, além do envio de autógrafos e desenhos – como de Blaise Cendrars. Os postais já haviam sido incluídos na edição de Tudo Está Tão Bom, Tão Gostoso…: Postais a Mário de Andrade (Edusp/Hucitec, 1993), organizada por Marcos Antonio de Moraes, que está esgotada.

Igualmente são documentos importantes as dedicatórias que eles destinaram um ao outro nos respectivos livros, grande prova de afeto e amizade, também raramente reproduzidas.

As fotos, que flagram a presença de Mário na Fazenda Santa Teresa do Alto, junto de Oswald, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira e outros, são preciosas, especialmente aquelas tiradas pelo próprio Mário.

Incluímos ainda retratos deles, alguns pouco conhecidos, como o registro dos dois que Di Cavalcanti fez em 1933, quando eles já haviam rompido, e uma caricatura de Mário, feita por Oswald, ainda em 1922. Como contrapartida, incluímos o manuscrito do “Poema Tarsiwaldo”, dedicado por Mário ao casal Tarsila e Oswald, em dezembro de 1925, quando ficaram noivos.

Houve o desejo de reconstruir o diálogo e a amizade entre eles também por meio das imagens. Pode-se dizer que o livro tem uma narrativa visual.

A maioria dos documentos pertence ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da usp, mas há materiais também de outras instituições e coleções particulares, que foram localizados ao longo de anos de pesquisa. É importante dizer que abordei esse conjunto de cartas pela primeira vez em um artigo publicado em 2008; então, o processo até a publicação do livro foi bem longo, e a pesquisa foi se ampliando.

Qual é a importância da divulgação e do estudo da correspondência entre Mário e Oswald de Andrade?

GA: Essas cartas permitem ver com clareza a grande amizade que os uniu, a personalidade de Oswald, ao mesmo tempo afetuoso e ferino, e sua admiração por Mário. Demonstram a atuação de Oswald para divulgar o modernismo na Europa e também o processo de criação de algumas de suas obras, como Serafim Ponte Grande (Ariel, 1933), de que ele cita trechos em cartas. O conjunto é quase um diário de bordo, pois registra os vários lugares pelos quais passou: Portugal, Paris, Grécia, Jerusalém, Suíça… Ainda há a correspondência enviada quando ele estava a bordo e os cartões-postais. Até a passagem pela África, em uma escala do navio, está documentada em um postal em que Oswald aproveita para fazer um gracejo com a aparência de Mário.

No capítulo “Andrade versus Andrade”, são relatados detalhadamente os altos e baixos da amizade entre os dois, as intrigas, os desentendimentos, a admiração e o jeito por vezes “cínico” de Oswald com o amigo. Como foi o processo de construção desse capítulo?

GA: Eu me detive na correspondência de Mário de Andrade de forma ampla, para saber como Oswald era visto por ele e como ele via a personalidade e a obra de Oswald no âmbito privado, uma vez que o que está no âmbito público – ou seja, os textos escritos para publicação e as entrevistas – é mais conhecido e estudado. Isso foi necessário também pelo fato de não termos as cartas que Mário enviou a Oswald; então era preciso ver se de alguma maneira as respostas e os comentários estavam direta ou indiretamente em outros documentos.

O estudo de tudo isso, dos textos públicos e privados, permitiu entender como a amizade se construiu e se destruiu: como eles se admiravam, como Mário reagia às ironias de Oswald, como Mário refletia sobre a relação deles depois do rompimento, como a relação deles oscilava mesmo quando ainda eram amigos.

Cruzando essas informações – ensaios de um sobre o outro, entrevistas, cartas etc. –, é possível ver e entender a personalidade de Oswald e a oscilação de Mário, entre o afeto e a mágoa, quanto à apreciação de Oswald. Assim fica evidente que a admiração intelectual mútua os aproximou e não desapareceu depois que eles se afastaram em 1929, embora ambos tenham tido momentos de fúria.

Os documentos localizados até o momento ainda não permitem saber exatamente o que causou o rompimento, temos apenas hipóteses sobre isso. Mas fica evidente que os dois eram personalidades complexas: é injusto taxar Oswald de cínico e desconsiderar o afeto que ele expressa por Mário, assim como não se pode ignorar que, mesmo quando eram amigos, Mário fazia duras críticas a Oswald nos escritos privados. Tanto a amizade como o afastamento deles envolveram questões que são inerentes às relações humanas: admiração, afeto, inveja, ciúmes, vaidade, ironia, brincadeiras, aos quais qualquer pessoa reage de forma oscilante, dependendo do momento. Com eles, não foi diferente.

A troca de críticas entre os dois é um aspecto muito interessante dessa relação. Por vezes, isso causava brigas e, ocasionalmente, pareciam seguir em frente como se nada tivesse acontecido, até que, por fim, não mais reataram. O que aconteceu para que uma amizade tão forte tenha terminado dessa forma?

GA: Há uma afirmação relativa a Oswald, que se repete sempre, que aponta que ele perdia o amigo, mas não perdia a piada. Costumo dizer que ele era inconsequente, não só quanto ao que dizia como também quanto a algumas atitudes. No caso de sua amizade com Mário, comprovam-se as duas coisas: ele pode ter perdido o amigo por causa de uma piada mais audaciosa e agiu de forma inconsequente. Mário tinha consciência desse temperamento de Oswald: o tema aparece, inclusive, em sua correspondência com Manuel Bandeira e também em seu artigo sobre Oswald, publicado em 1924, incluído no “Dossiê” do livro.

Quanto às críticas mútuas, no âmbito público, elas estavam relacionadas à admiração e à honestidade intelectuais. Tanto nos textos públicos como nos privados de Mário, é evidente a necessidade que ele sempre teve de fazer uma apreciação séria do trabalho dos companheiros, e ele fez isso a vida toda, no que se refere a todos os modernistas com os quais dialogou. Oswald e os demais também eram assim. É comovente como eles se admiravam mutuamente, acompanhavam com entusiasmo a produção uns dos outros e faziam críticas sinceras, apontavam problemas, discordavam. Isso aparece extensamente na correspondência de Mário com vários de seus contemporâneos – não só Oswald como também Manuel Bandeira, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral – e nos artigos que ele escreveu sobre estes e outros.

A amizade que os unia era muito forte e a prova disso é que Oswald nunca se conformou com a recusa de Mário a se reconciliar. E Mário nunca aceitou a reconciliação, apesar da insistência de Oswald, porque o que ele sentia era muito forte para relevar a atitude que levou à ruptura. Como ele diz na carta a Tarsila, em 1929, a amizade “foi das mais nobres”, ele ficou “ferido crudelissimamente”. Ele diz ainda em carta a Carlos Drummond de Andrade, em 1934, que recorda Oswald “acariciando a cicatriz”; já Oswald diz, em 1954, “eu nasci do Mário”. Podemos dizer que a relação deles, tanto a amizade como a inimizade, foi visceral.

As cartas de Oswald se referem a eventos, pessoas e cenários muito específicos que devem ter sido trabalhosos de situar para a compreensão do leitor. Como se deram as pesquisas e as decisões de edição?

GA: As cartas têm características que marcam a escrita de Oswald em seu conjunto: a síntese, a invenção e a surpresa, como ele diz no Manifesto da Poesia Pau-Brasil, que completa 100 anos agora, em março de 2024. Então, ele menciona muita coisa de forma quase cifrada, faz trocadilhos e, com base no nome de uma pessoa ou de uma obra, é possível recuperar o contexto de suas atividades na Europa. Mas, para entender isso, é preciso ter mais informações referentes ao que está acontecendo lá, e essas informações estão em crônicas e artigos que ele escreveu na mesma época ou nas cartas de Tarsila do Amaral a outros interlocutores, nos documentos que estão em seu arquivo, como o programa dos teatros parisienses que ele frequentou, ou em outros arquivos.

Foi preciso pesquisar cada nome próprio ou referência que aparece nas cartas e cruzar informações para entender muita coisa que ele diz; ao mesmo tempo, era fundamental ter conhecimento do contexto cultural no Brasil, da circulação dos artistas que ele menciona, para compreender o conjunto. E muita coisa se esclarece também em outras cartas, como as de Sérgio Milliet para Mário ou para Ian de Almeida Prado, por exemplo, ou mesmo nas crônicas que Milliet publicou na revista Ariel, na correspondência de Tarsila com Mário ou com a família etc.

As notas têm como objetivo contextualizar o que ele menciona, e elas dão conta do que é relevante para entender a correspondência. As decisões sobre a edição seguem o padrão da coleção Correspondência de Mário de Andrade – um de seus coordenadores, Marcos Antonio de Moraes, acompanhou todo o trabalho de perto e teve uma atuação fundamental para que o livro se concretizasse como desejávamos. Fiquei muito feliz com o resultado. Sou muito grata a ele, assim como à Edusp.

Em que contexto foi criado o poema conjunto assinado pelos Andrades? O que se sabe sobre o “Oswaldário dos Andrades”?

GA: O poema “Homenagem aos Homens que Agem” foi escrito em 1927 e publicado no mesmo ano na revista Verde. Talvez tenha sido escrito durante algum encontro deles na Fazenda Santa Teresa do Alto, onde estiveram várias vezes nesse ano. Esse poema e a proposta do título do livro são muito curiosos. Mas, infelizmente, não há mais informações sobre isso. É a única produção a quatro mãos dos Andrades e seria incrível se o livro existisse, mas não há pistas se chegaram a escrever mais alguma coisa juntos para esse projeto.

Ao longo do trabalho de organização do livro, existe alguma carta que chamou a sua atenção em particular, que mereça algum tipo de destaque?

GA: O oitavo volume da coleção Correspondência de Mário de Andrade tem um aspecto inusitado que é o fato de contarmos apenas com as cartas de Oswald a Mário. As cartas de Mário a Oswald não foram localizadas. O que se diz é que Oswald não guardava nada, o que ficou foi recolhido por seus familiares. E nesse caso há o agravante de que a maioria das cartas foi trocada durante as viagens de Oswald, em meio a certa agitação, o que era ainda menos propício para que ele guardasse ou organizasse qualquer coisa. Algumas cartas de Mário a Tarsila que foram preservadas trazem temas abordados por Oswald nas cartas enviadas a Mário; então podem ser consideradas como respostas. Nesse caso, são citadas nas notas de rodapé, mas não foram incluídas integralmente no corpo do livro. Elas fazem parte do segundo volume da coleção, Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral (Edusp, 2001), organizado por Aracy Amaral. Os dois volumes se complementam.

Gostaria de destacar a primeira e a última correspondência. A primeira é um cartão de luto, de 1919, o único documento enviado quando Oswald estava, supostamente, em São Paulo. Ele diz: “Recebi a tua excelente carta”. Ou seja, Oswald diz claramente que está respondendo a uma carta de Mário, que não localizamos. Podemos levantar a hipótese de que quem começa o diálogo epistolar é Mário… E o assunto é absolutamente pessoal: a amizade e o luto (de Oswald em decorrência da morte de Daisy, com quem ele se casou no leito de morte). A última carta, quase nove anos depois, está vinculada ao lançamento da Revista de Antropofagia, em cujo primeiro número, de 1928, Mário publica o poema “Manhã”. Oswald escreve a bordo, a caminho de Paris: expressa sua admiração intelectual e elogia o poema. A viagem também aparece como tema: promete a Mário “gravatas de Paris” e espera que Mário lhe conte “as maravilhas de Marajó”. A última frase é: “A antropofagia é um fato”. Assim termina essa carta e também a correspondência entre eles. Os dois documentos são emblemáticos do conjunto, pois trazem os temas centrais que o percorrem.

 

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