Antropólogo usa história da arte para compreender origens e poderes de artefatos indígenas

Em “Ardis da Arte: Imagem, Agência e Ritual na Amazônia”, Carlos Fausto traça comparativo etnográfico entre regimes imagéticos e culturas de povos originários das Américas e aqueles relacionados à sociedade ocidental europeia

Em Edusp

Por Divulgação

Trabalhando com povos indígenas desde 1988, o antropólogo Carlos Fausto decidiu estudar o significado de artefatos e rituais com base na origem de sua concepção, para entender os efeitos que os utensílios e as imagens produzem tanto em quem os manipula quanto nos que atuam como espectadores. Para isso, fundamentou sua pesquisa na história da arte, de modo que pudesse compreender e comparar tanto as culturas dos povos originários quanto seus regimes imagéticos com os mesmos elementos na sociedade ocidental europeia.

O resultado está em “Ardis da Arte: Imagem, Agência e Ritual na Amazônia”, lançado neste ano pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp). Com uma construção “pouco convencional”, nas palavras do autor, o livro traça uma densa etnografia de povos indígenas, baseada em seus principais objetos de estudo – os Parakanã, no Pará, e os Kuikuro, no Alto Xingu.

O autor, que também dirigiu o documentário “As Hipermulheres” (2011), em que revela um ritual de mulheres kuikuro, encontrou entre membros desse povo um arsenal de objetos com grande apelo estético, incluindo desenhos, pinturas, padrões, máscaras e instrumentos musicais, entre outros itens, o que chamou sua atenção. Assim, utilizou em sua análise esses artefatos e os poderes a eles atribuídos – como a possibilidade de um tronco tornar presente um antepassado, os encantamentos de uma flauta mágica ou a existência de seres que se transformam em homens. Alicerçado em seu arcabouço acadêmico, fez um comparativo entre povos indígenas do Alasca ao Chaco, assim como entre os povos originários e os europeus.

Por que decidiu tratar essas imagens indo além da simples relação entre signo e significado, ao pensar em contextos, rituais, crenças e assim por diante?

Carlos Fausto: Existem duas razões. Por um lado, é um trabalho de antropologia, então, quando falamos em arte, em artefatos, é dentro de um contexto específico. O antropólogo põe as coisas em contexto. Entender essa conjuntura mais ampla é sempre importante. Por outro lado, faço uma escolha de não me concentrar no símbolo e nos seus significados. Há uma tendência teórica geral, um movimento, que não é só da antropologia, de não se interessar por aquelas três formas sígnicas que Charles Sanders Peirce propõe – o símbolo, o ícone e o índex. Eu me propus me concentrar mais no índex e estabelecer um diálogo com a tradição icônica ocidental, ou, se preferir, cristã. Para nós, antropólogos, até um tempo atrás o nosso domínio por excelência era o do símbolo, que era aquele signo arbitrário, em que não existe uma relação senão convencional entre o significado e a coisa que significa. Diferentemente do ícone, no qual você tem uma semelhança, e do índex, em que você tem uma espécie de continuidade. Os antropólogos consideravam que o mundo do símbolo seria o próprio da humanidade, e, portanto, o que estudavam seriam formas que os humanos recortaram, de diferentes maneiras, do mundo existente lá fora. Hoje, com a crítica à noção da dicotomia entre natureza e cultura, fazer isso se tornou mais complicado. Há uma tendência de buscar certa viscosidade entre o signo e as coisas no mundo. Então, em relação às imagens, me interesso antes pelo que fazem, pelo tipo de resposta que produzem em quem as manipula ou as recebe. Foi essa a minha escolha, que corresponde a um movimento na história da arte e também na antropologia no fim dos anos 1980.

Qual a importância de relacionar as teorias da história da arte e da antropologia em sua pesquisa?

CF: Foi um grande desafio porque comecei com um problema. Tinha estudado para o meu doutorado um povo de língua tupi-guarani chamado Parakanã, habitante do estado do Pará, entre os rios Tocantins e Xingu. Um povo com bem poucos objetos, bem poucos artefatos, com uma vida material muito simples. Resolvi começar uma nova pesquisa no Alto Xingu, ali no Mato Grosso, e vi um mundo de objetos com apelo estético: desenhos, pinturas, padrões, máscaras, enfim, centenas de objetos. Foi então que comecei a estudar antropologia da arte e antropologia do ritual, temas nos quais não era especialista, e isso me tomou muito tempo. Uma das razões foi a decisão de me aprofundar na história da arte. Existe um grau de erudição entre os estudiosos da área, mas eles estudam, por exemplo, a arte no século XVII em determinada região e sabem tudo sobre aquilo. São capazes de interpretar as telas sobre as quais se debruçam de uma maneira supersofisticada e queria conversar com eles também, não só com os antropólogos. Passei muitos anos lendo. Aprendi um pouco, acho que o suficiente para produzir um livro de antropólogo com uma leitura não totalmente ingênua, e de alguma maneira sofisticada, sobre a história da arte.

Pode dar um exemplo prático de análise que fez durante o trabalho?

CF: Por exemplo, discuto a efígie do Quarup. Trato de um assunto que é muito caro para a história da arte desde Platão, pelo menos, que é o problema da mimese, ou imitação, ou verossimilhança, um elemento fundamental na nossa tradição. Todo esse problema da mimese me fez tentar pensar no contexto do Alto Xingu, de um ritual específico, talvez o mais conhecido do Brasil, que é o Quarup, com aquele tronco que representa, ou presentifica, um chefe morto. Para analisar esse objeto em contexto ritual, precisava necessariamente dialogar com temas da história da arte e da estética, entre os quais a questão da mimese. Tento oferecer a minha leitura específica, muito influenciada pelos trabalhos do professor Luiz Costa Lima, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, que tem mais de um livro escrito sobre a mimese. Talvez esse seja o exemplo mais concreto de tentativa de um diálogo, pegando um conceito que é forte na filosofia da arte, na estética, na história da arte e analisando seu modo de funcionamento para falar de um objeto ritual no Xingu que está ali no lugar de um chefe morto. E tem total relação com as discussões sobre os dois corpos do rei na Idade Média, o corpo físico e o corpo da realeza, por exemplo. Tento conversar com esses conceitos, de alguma maneira, com materiais indígenas sul-americanos que eu acho – e, às vezes, até exagero –, apresentando a diferença deles em relação aos nossos regimes imagéticos. Quero montar uma oposição para colocar em evidência as diferenças existentes no mundo indígena das Américas. Claro que, se fosse lido de outra maneira, poderia mostrar as aproximações, o que seria igualmente legítimo, mas não foi a minha escolha.

O que é exatamente a vida das coisas, nesse contexto? Como essas imagens geram seres extraordinários, por exemplo?

CF: Um dos pontos com que trabalho é justamente uma discussão que surge na história da arte chamada teoria da resposta, na qual a preocupação fundamental é saber o que as imagens produzem nas pessoas que as manipulam ou são impactadas por elas como audiência. Por que as imagens podem causar angústia? Como as imagens podem parecer pessoas? E isso não só no contexto ritual dos indígenas da América do Sul, da Amazônia, mas no nosso contexto, nos museus, por exemplo. Todos os historiadores da arte se deparam com esta questão: como determinada imagem pode causar determinado efeito? Por que as pessoas destroem imagens? A iconoclastia é uma coisa que, historicamente, marca a nossa sociedade, desde os primeiros episódios iconoclastas bizantinos, passando pela Reforma Protestante e chegando a eventos contemporâneos em que se chuta a imagem da santa ou se tenta destruir a “Pietà” do Michelangelo. Então, a minha pergunta era como falar sobre a efetividade dos rituais e dos objetos que são mobilizados nesses ritos, pensando também em como a parte estética é importante para compreender como se passa a atribuir a essas imagens ou artefatos uma condição de pessoa, por exemplo, ou a capacidade de agir sobre o mundo. Fui muito influenciado por um autor franco-italiano chamado Carlo Severi no que concerne à ideia que mais me preocupa neste livro: tentar desvendar como se produzem seres extraordinários. Normalmente, a leitura mais frequente sobre as populações indígenas é aquela que apenas afirma que na cosmologia delas existem esses seres extraordinários. Certo, mas a ontologia delas é diferente. Ela inclui no mundo esses seres poderosos que são capazes de transformação, que podem se transformar em humanos, falam diferentes línguas e assim por diante. Em vez de partir daí, me pergunto: como determinado ritual produz esse tipo de ser? Então, há certa inversão da análise do que é uma ontologia, e uma das maneiras de fazer isso é dedicando atenção especial à estética e à pragmática, principalmente em contexto ritual.

Poderia falar um pouco mais sobre essa transmutação, essa mistura de um objeto com uma pessoa nas imagens e nos rituais dos povos originários, e sobre como ela se diferencia da cultura da civilização ocidental europeia?

CF: Tem uma questão política de fundo nesse tema que é a seguinte: tem um livro do professor francês Serge Gruzinski chamado “A Guerra das Imagens” (Companhia das Letras, 2006), no qual ele analisa o processo colonial como uma guerra de imagens de lado a lado, com uma tremenda incompreensão europeia do que eram as imagens indígenas – no caso dele, no México. Mas, também, se pensarmos nesse mesmo período, faz parte desse processo colonial a leitura das estátuas africanas e essa ideia do fetichismo, de atribuição de vida e agência a objetos. “Ah, eles confundem o reino do sujeito com o reino dos objetos porque têm um pensamento irracional, mas nós, modernos, não confundimos.” A nossa sociedade talvez seja a que tenha levado ao extremo essa ideia. Os europeus literalmente se mataram durante as guerras religiosas em torno dessa questão: se na eucaristia pão e vinho se transformavam de verdade no corpo e no sangue de Cristo, se era uma metáfora ou algo real, sem falar no esforço para a destruição de imagens. Então, parece que o nosso mundo tem uma angústia muito grande com relação ao fato de que imagens podem ser mais do que simples imagens. Parece que estamos diante do problema de saber se são simples objetos ou também sujeitos. Mas foi isso que os europeus fizeram durante o processo colonial e atribuíram aos africanos, aos indígenas das Américas, pois “eles é que são irracionais”. Tento mostrar como isso tem uma conotação política e, portanto, não é privilégio de ninguém contar com a hipótese de que os objetos, os artefatos, podem também ter qualidades pessoais, podem agir sobre o mundo, mas, ao mesmo tempo, tento reinterpretar a noção de crença. Em vez de uma crença cega e irracional, sólida, penso a crença como um estado de incerteza, um momento no qual pode ser que a estátua fale, pode ser que seja um espírito, mas é sempre em modo condicional. Há algo que repito muitas vezes e começa com uma anedota que conto no início do livro; chamo de “o sorriso discreto do professor”. Estou no meio de um ritual e um amigo kuikuro (povo do Alto Xingu) me diz: “Esses objetos aí já viraram espíritos”. E eu pergunto: “Como assim?” Ele responde: “Já viraram, sim. Vá perguntar para o nosso irmão mais velho, que é pajé”. Vou à casa do pajé e ele me explica maravilhosamente bem por que os artefatos já viraram espíritos. Volto e pergunto a alguém que não é pajé, e sim um professor que está fazendo o seu artefato para dançar no ritual: “E aí, já virou espírito?” Ele dá um sorrisinho e responde: “Ainda não, mas vai virar”. Há certa ironia na história. E inauguro a conclusão com outra anedota, ocorrida na festa das hipermulheres, ritual sobre o qual fiz um filme (“As Hipermulheres”, 2011). Gravamos uma conversa entre dois homens; um deles fala o seguinte: “Está vendo aquelas duas mulheres? Já viraram espíritos”. O outro diz: “É mesmo?”, tendo como resposta uma risada. As mulheres, na verdade, estão cantando: “Eu sou uma hipermulher”, que quer dizer “sou um espírito”. Então começo uma discussão sobre o lugar da ironia e a obsessão ocidental pela verdade, desenvolvendo esse problema até a conclusão.

Por ser fotógrafo, como relaciona o ofício a essa questão da imagem? A combinação de antropologia e fotografia muda de alguma forma o seu olhar?

CF: Isso é curioso. Gosto muito de fotografar, mas, para mim, isso não é um objeto de reflexão. Faço quando vejo alguma coisa que deve ser fotografada e, em certo sentido, ela só se cola depois, quando vejo as imagens produzidas e começo a pensar em certas coisas. Quando você fotografa, perde muito a visão mais ampla, porque fica fixado no visor e perde certas cenas que estão fora do seu campo visual. Ao mesmo tempo, quando vai rever a cena depois com a foto impressa ou digital, descobre coisas que não tinha visto antes. Então, é também um recurso de pesquisa. O mais importante para pensar a imagem foi a minha prática como documentarista, fazendo filmes com os Kuikuro. Junto ao Vincent Carelli (antropólogo, indigenista e documentarista franco-brasileiro), fiz um processo de formação de indígenas para a realização em audiovisual e isso acabou sendo, de um lado, um instrumento de pesquisa e, de outro, uma forma de adquirir uma percepção mais fina do que são os processos rituais. Formamos uma equipe com jovens kuikuro e, no caso de “As Hipermulheres”, elas determinavam o que deveríamos filmar. Porque não conhecíamos bem o ritual feminino, assim como os cineastas indígenas, que eram muito jovens. Em boa parte, éramos dirigidos pelas mulheres. Há um ponto que é engraçado. Acontecem muitas coisas ao mesmo tempo no ritual e sempre há eventos de madrugada. Uma noite, estávamos todos exaustos e fomos dormir; perdemos uma parte que as mulheres consideravam muito importante. Levamos o maior “sabão” no dia seguinte. Elas disseram: “Estão com preguiça? Fizemos aquela parte que não podia faltar, tinha que ter, e vocês não filmaram”. Eu respondi: “Mas vocês não falaram para a gente, então fomos dormir”. Não saberia dizer quanto isso influenciou a minha reflexão, mas certamente influenciou a minha prática etnográfica. Foi um processo compartilhado, principalmente em relação à câmera de vídeo.

Enfim, como vê o processo de produção de “Ardis da Arte”?

CF: Acho interessante dizer que o livro é um experimento. Ele não é muito convencional na sua construção e na maneira como vai desenrolando os problemas. Em parte porque eu queria fazer uma coisa etnograficamente densa, então eu só trato daquilo que é possível falar do ponto de vista das minhas pesquisas com os Kuikuro ou os Parakanã. Se não conseguir falar de determinado assunto com base nos meus dados etnográficos, então não valerá. Fiz a escolha de, num capítulo, tratar do corpo vivo ou morto; em outro, tratar de aerofones, flautas sagradas; em outro capítulo, falar sobre máscaras; e, em dois capítulos, discorrer sobre efígies humanas, que são muito raras na Amazônia. Essas opções se deveram fundamentalmente ao fato de que eu tinha material etnográfico sólido e consistente. Ao mesmo tempo, queria fazer um livro comparativo. De um lado, entre diferentes povos indígenas. Então, com exceção dos capítulos sobre a efígie humana, que praticamente não tem paralelo fora do mundo amazônico, nos outros capítulos tento sistematizar algumas questões. Por exemplo: onde tem complexo de caça de cabeça? Onde aparece determinado tipo de flauta? Quais são as diferenças entre as regiões? De outro lado, faço uma comparação binária, que é sempre perigosa porque você tende a simplificar as coisas para poder mostrar a que ela se opõe. Comparo o regime de imagens cristão e o dos ameríndios. Simplifico muito, evidentemente. Teve um fórum sobre o livro em que a historiadora especialista na era medieval Caroline Bynum, que eu considero um gênio, talvez tenha se sentido um pouco criticada porque falei que a interpretação que ela fez serve muito bem quando se pensa só no mundo ocidental. Mas, quando fazemos a oposição com o mundo da Amazônia, as coisas mudam. Ela não gostou muito, acho, mas foi algo que tentei fazer: combinar etnografia muito densa com dois tipos de comparação. Isso era também uma maneira de tentar justificar todo o meu investimento em história da arte e história medieval, para que o livro pudesse ser lido não apenas por aquelas pessoas que se interessam por populações indígenas, mas também pelas que querem pensar sua própria sociedade e sua relação com as imagens, a tradição à qual pertencem, reconhecendo-se no mundo de imagens. Se for alguém católico, por exemplo, poderá se identificar nas discussões sobre a eucaristia. No caso dos protestantes, poderão se reconhecer na ausência de imagens, e assim por diante. Foi uma tentativa, ou um experimento, de fazer um livro combinando todas essas coisas; espero que tenha sido bem-sucedido.

 

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