Para autora, conjunto habitacional é patrimônio cultural que conta a história de um país

Arquiteta Flávia Brito do Nascimento diz que moradias sociais da primeira metade do século XX representam urbanismo moderno que visa racionalizar a construção de cidades

Em Edusp

Por Divulgação

A noção mais comum de patrimônio cultural que merece ser tombado e protegido se associa a grandiosos monumentos e construções, mas qualquer espaço considerado histórico com base na relação com a sociedade deve ser conservado e tratado como tal. Por isso, a arquiteta Flávia Brito do Nascimento defende uma maior atenção aos grandes conjuntos habitacionais erguidos entre 1940 e 1960, por refletirem o modo como o urbanismo moderno racionalizou a construção de moradias sociais de acordo com um conceito de cidades acessíveis aos trabalhadores.

Autora do livro “Blocos de Memórias: Habitação Social, Arquitetura Moderna e Patrimônio Cultural” (Edusp, 2017), Flávia prepara uma nova publicação, que amplia a abordagem do tema. Ela também é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e diretora do Centro de Preservação Cultural da instituição (CPC-USP).

No livro Blocos de Memórias: Habitação Social, Arquitetura Moderna e Patrimônio Cultural, a abordagem parte da falta de reconhecimento da arquitetura de conjuntos habitacionais como patrimônio. Por quê?

Flávia Brito do Nascimento: Desenvolvi essa reflexão depois de uma série de pesquisas que fiz desde o mestrado, em que discuti o papel que a habitação social na arquitetura moderna teve em um contexto internacional e, mais especificamente, na América Latina. Participei de um grupo de pesquisa grande sobre os pioneiros da habitação social, coordenado pelo meu colega da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP e orientador, Nabil Bonduki. O continente latino-americano foi um dos que mais construíram habitações sociais entre os anos 1940 e 1960. Em países europeus como França e Alemanha, essa produção é bastante reconhecida e considerada patrimônio. No caso brasileiro, temos uma arquitetura moderna muito reconhecida internacionalmente, como no caso de Brasília, com a arquitetura do Oscar Niemeyer e as obras do Lúcio Costa. Mas a habitação social ficou de fora e levou muito tempo para ser reconhecida como patrimônio e parte da construção das nossas cidades. A reflexão do “Blocos de Memórias” é sobre essa contradição de o Brasil ser um país que tombou obras de arquitetura moderna muito precocemente, como a Pampulha, que não estava nem inaugurada e já foi tombada, mas que demorou a reconhecer a produção de ocupação social. O artigo 216 da Constituição brasileira de 1988 amplia o entendimento sobre o que pode ser considerado patrimônio, incluindo muitas coisas, e não só aquilo que é muito bonito ou muito antigo. O patrimônio deve ser reconhecido com base na sociedade. A habitação é uma ótima forma de refletir sobre o que podemos considerar patrimônio para além dos critérios que são comumente aceitos, de abrir uma discussão. Essa foi a reflexão que eu trouxe no “Blocos de Memórias”, quando também foquei um caso específico: o Conjunto Residencial do Pedregulho, no Rio de Janeiro, que é nossa obra mais importante, mais monumental, mais estudada e que também não tem reconhecimento como patrimônio nacional.

Como os conjuntos habitacionais contribuem para contar a história de uma cidade?

FBN: Esses conjuntos são testemunhas da história do século XX, das lutas dos trabalhadores por moradia e do papel do Estado na promoção do bem-estar social. A carteira de trabalho, a regulamentação das horas de trabalho, as férias e a promoção de habitação passam a fazer parte de um pacote de direitos do trabalhador e da trabalhadora que deveria ser responsabilidade do Estado. No Brasil, até os anos 1930, a habitação era promovida por empreendedores que construíam vilas operárias e alugavam as casas aos trabalhadores. Com o crescimento urbano e a explosão demográfica dos anos 1940 e 1950, a iniciativa privada não deu conta de toda a demanda e, ao mesmo tempo, o varguismo incorporou a transformação do trabalhador como parte, de certa forma, da sua missão civilizatória. Nesse momento, a arquitetura moderna brasileira está florescendo, então uma equipe de profissionais vai para o Ministério da Educação e Saúde Pública e faz várias produções ligadas ao movimento moderno. Outro grupo vai ao Ministério do Trabalho e, por meio da criação dos institutos de aposentadorias e pensões, reverte parte dos recursos para a construção de habitações, que eram para uma elite de trabalhadores porque não se dava conta de cobrir a demanda. Mas, naquele momento, apostava-se que o Estado daria conta de resolver esse problema. Esses conjuntos habitacionais contam essa história da atuação do Estado e uma história do movimento moderno no Brasil, que vai encampar toda essa reflexão e preocupação com a promoção da habitação para tentar racionalizar a construção, criar meios para construir uma moradia que não fosse só uma célula, mas integrada à cidade, com grandes espaços livres, equipamentos, escola, creche, posto de saúde, que de alguma forma ajudassem a formar e amparar esse trabalhador. Isso também é importante para entendermos a história das cidades brasileiras, porque são fragmentos das metrópoles. Temos conjuntos em São Paulo, na Mooca, por exemplo, em bairros que restam como vestígios de uma área que ainda estava em expansão. No Rio de Janeiro, o subúrbio é industrial, com muita terra vazia, mas dados estatísticos mostram que, em certo momento dos anos 1950, esses conjuntos compunham 40% da ocupação do subúrbio carioca. Em outras metrópoles de países como Chile, Argentina e Venezuela, há um fenômeno parecido. Esses movimentos são testemunhos dessa forma de pensar e construir a cidade.

No Brasil, são mais comuns projetos de conservação e tombamento de monumentos ou obras de forma individualizada. Como é possível fazer esse trabalho em se tratando de um conjunto habitacional?

FBN: É um desafio muito grande. No caso brasileiro, temos hoje mais de cem conjuntos urbanos tombados que são enormes problemas de gestão. Há conjuntos com 5 mil imóveis. A promoção de moradia pelo Estado colapsou nos anos da ditadura militar, quando tivemos a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH). Tiraram da proposta toda a concepção de morar, simplificaram as casas e construções, levaram-nas ainda mais para as periferias e privatizaram os conjuntos que haviam sido construídos nos anos 1940 e 1950. Passaram a ser imóveis geridos pelos próprios moradores. Do ponto de vista da gestão, houve uma incompreensão pelo próprio Estado de que são importantes e devem ser geridos como centros urbanos, com todas as contradições que existem. Há, de fato, muitas dificuldades, até mesmo para atribuir valor a esses conjuntos; no entanto, mais recentemente, depois de vários estudos publicados, São Paulo e Rio tiveram vários conjuntos tombados em nível municipal. Agora, esses conflitos de conservação são os mesmos do cotidiano de qualquer área tombada ou preservada, então não há uma resposta pronta. É algo difícil e continuado, entendendo-se que o patrimônio é um bem comum. Sem a preservação, corremos o risco de ter cidades iguais e perder a memória da nossa própria produção material. Vemos isso em São Paulo com essa nova verticalização.

Como é o trabalho de conservação patrimonial feito no CPC da USP?

FBN: O CPC da USP é um órgão de caráter consultivo, que não determina e não faz tombamento, não faz registro de patrimônio imaterial. A missão é fomentar a reflexão e a salvaguarda do patrimônio universitário para a própria comunidade uspiana, mas também para a comunidade como um todo. Esse patrimônio é muito diverso, rico, e inclui práticas, saberes, celebrações, formas de expressão, lugares, tradições, rituais e edifícios. É algo apropriado e criado pela comunidade que convive nesses espaços universitários e se atualiza constantemente – aliás, como ocorre com todo patrimônio. O CPC tem uma sede, que é um patrimônio cultural tombado da USP, a Casa de Dona Yayá, que foi doada e restaurada pela USP. Damos cursos e palestras sobre políticas e patrimônio em geral que têm uma demanda enorme, além de promovermos seminários, congressos e publicações. E estamos no único bairro tombado de São Paulo, o Bixiga, que tem uma comunidade muito ativa, com muitas ações culturais e reflexões sobre o tema. Então, é uma tríade de ações: no próprio patrimônio da USP, na discussão nacional e também no Bixiga e na casa. Veja a própria memória da Yayá. Ela foi uma moradora com diagnóstico ligado a saúde mental nos anos 1920, confinada durante quarenta anos na casa, que foi progressivamente adaptada para a condição de saúde dela. Ela faleceu em 1961 e deixou quase todo o patrimônio para a USP, que geriu, administrou e finalmente restaurou essa casa para abrigar o CPC. Após a pandemia de covid-19, mudou muito a nossa relação com a saúde mental, e a casa é um testemunho da história, de como era o tratamento no Brasil, além de mostrar a própria condição e a exclusão das mulheres. A exposição que está na casa sobre a Yayá é um convite à reflexão sobre todas essas questões da ex-proprietária. Já sobre o patrimônio universitário, estamos com um projeto grande envolvendo roteiros do patrimônio cultural da USP, no campus de São Paulo, que vai gerar uma publicação, e teremos o primeiro concurso de fotografias do patrimônio universitário, aberto a toda a comunidade. A equipe toda está investindo bastante também no inventário das referências culturais.

A atuação do CPC pode servir como modelo para a preservação nas cidades?

FBN: Não exatamente como modelo. Tentamos trabalhar na compreensão, segundo a perspectiva de patrimônio que a Constituição nos dá, que é bastante ampla, que entende a complexidade e a ação das pessoas. A seleção do patrimônio ocorre baseada em um conceito de referência cultural, que é um saber, um espaço que é ativado na relação com as pessoas. Uma celebração, uma festa ou um lugar podem se tornar patrimônio cultural e nem sempre isso é claro para as pessoas, que tendem a achar que o patrimônio é uma grande edificação, muito antiga e muito bonita. É o mesmo que ocorre com os conjuntos habitacionais. Há uma dificuldade em comunicar que uma casa simples pode ser um patrimônio porque ali existem memórias, passagens de vida, relações que devem ser perpetuadas a gerações futuras, se as pessoas assim desejarem. Se olhamos o patrimônio universitário não só como sinônimo de grandes edificações, mas como é definido na Constituição, damos um exemplo para a sociedade daquilo que pode ser entendido como patrimônio. Aprendemos a respeitar e entender que essas temporalidades devem permanecer. Por exemplo, fui ao campus de São Carlos e os estudantes me mostraram o Uspão, que é a inscrição “USP” em um morro, aonde vão no fim da tarde para descansar, conversar, socializar. Para eles, é um espaço que deve ser mantido, de onde se tem a vista da cidade. Então entendo que o CPC não é um modelo, mas mostra a diversidade e a riqueza de entender o patrimônio em associação às memórias e ao espaço que as pessoas desejarem destacar.

Fale um pouco sobre seu próximo livro.

FBN: O próximo livro se chama “Cotidiano Conjunto: Domesticidade e Patrimonialização da Habitação Social Moderna” e é um desdobramento de todos os trabalhos anteriores. Ainda olho para as formas de morar da arquitetura moderna, mas amplio esse olhar, tentando voltá-lo mais para dentro da casa, para as memórias. No anterior não tive a oportunidade de conversar com moradores, e nesse trabalho fiz uma série de entrevistas em conjuntos de São Paulo, tentando entender o significado desses lugares para eles. Fiz um grande esforço também para entender o espaço da casa, como se organiza internamente. Tenho dois capítulos que são dedicados às questões de gênero, porque as mulheres são protagonistas internacionalmente e também no Brasil, como no caso da atuação da Carmen Portinho, que foi uma engenheira e urbanista muito importante na história da arquitetura brasileira. Quanto à habitação social, as mulheres foram colocadas como legítimas detentoras do saber sobre a casa. Isso gera uma série de problemas em relação ao feminismo, porque reitera o lugar das mulheres na casa, mas também foi uma possibilidade de atuação profissional para muitas nos anos 1940 e 1950. Também trago uma reflexão sobre a França, onde passei um ano para minha pesquisa do pós-doutorado. Estudei os museus-apartamentos de conjuntos habitacionais, na região de Paris, então discuto como a França tem um pacto normalizado e políticas de memória em relação ao patrimônio da periferia.

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