Autor de “Direito Constitucional Brasileiro” afirma que é preciso refletir e contextualizar Constituição para entendê-la

Professor da USP, Virgílio Afonso da Silva é autor de livro que propicia conhecimento a leigos, estudantes e professores da área

Em Edusp

Por Divulgação

Entender a Constituição Federal depende de reflexão e análise de contexto, muito mais do que decorar ou citar textualmente os direitos e as regras que regem a democracia nacional. No livro “Direito Constitucional Brasileiro”, da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), o autor Virgílio Afonso da Silva, professor titular da disciplina na Faculdade de Direito da USP, pretende alcançar não só estudantes e profissionais do direito que buscam referências teóricas, mas também pessoas que desejam pleitear uma vaga em concursos públicos que exigem conhecimento no campo do direito constitucional.

Virgílio Afonso da Silva se graduou, fez mestrado e livre-docência em direito na USP, e doutorado na Universidade de Kiel, Alemanha. Foi pesquisador visitante no Instituto Max Planck de Direito Público Comparado, em Heidelberg, e na Universidade Humboldt de Berlim. Ele se dedica ao estudo dos direitos fundamentais e dos processos deliberativos no Supremo Tribunal Federal (STF) e em outras cortes supremas ou constitucionais.

O senhor poderia definir para o público em geral como se dá a aplicação do direito constitucional no cotidiano?

Virgílio Afonso da Silva: Há exemplos que operam em um plano de fundo, que as pessoas não percebem, como ter liberdade de expressão, poder criticar o governo, ir às urnas a cada dois anos para escolher representantes, escolher a sua religião, circular livremente… e por aí vai. São os direitos fundamentais garantidos pela Constituição, que, em geral, exercemos sem ao menos pensar neles. Há exemplos que não têm a ver com os direitos fundamentais, mas que também estão presentes no dia a dia. Quando pensamos no Congresso Nacional, no Supremo Tribunal Federal (STF) e na presidência da República, são todas instituições definidas e reguladas pela Constituição. Em época de eleição, as pessoas conversam sobre o TSE, que é um órgão criado e com poderes definidos pela Constituição.

Como foi o processo de elaboração da Constituição de 1988 e quais são suas características principais?

VAS: Dependendo de como se conta, o Brasil teve oito ou nove constituições, e todas coincidiram com alguma ruptura, positiva ou negativa, na nossa vida política. A primeira foi promulgada logo depois da Independência; a segunda, depois da Proclamação da República; a terceira, depois da Revolução de 30, e por aí vai até a Constituição de 1988, que é nossa Constituição atual e coincide com a volta à democracia. O processo de elaboração de todas foi bastante diverso. A Constituição imperial, de 1824, foi feita basicamente pelo imperador e por pessoas próximas a ele. A Constituição de 1891 teve participação maior, mas ainda assim de uma pequena elite que tinha direito a voto. A Constituição de 1937 foi feita por uma única pessoa, Francisco Campos, que era a cabeça jurídica de Getúlio Vargas. Em quase todas elas, o povo estava bem distante do processo de sua elaboração. No caso da Constituição de 1988, embora tenha sido feita no Congresso Nacional como outras, pela primeira vez havia representantes de uma Assembleia Constituinte votados pela maioria da população brasileira. Até 1985, analfabetos não votavam no Brasil, e, naquele momento, uma parte considerável da população era composta por analfabetos. Na história do país, a representação política sempre foi eleita por uma pequena parte da população. No início, eram só os homens com alguma renda, depois as mulheres passaram a votar, mas a questão do analfabetismo sempre foi uma grande barreira. Em 1988, contudo, havia uma Assembleia Constituinte eleita por uma maioria real da população. Durante esse processo, que foi comparativamente longo em relação a outras constituintes, houve grande participação popular. É óbvio que teve lobby, grupos de interesse, pessoas querendo garantir direitos e privilégios, mas havia também um grande contingente populacional que foi em peso a Brasília para defender a inclusão de direitos na Constituição. Eram trabalhadores, aposentados, indígenas, o movimento sanitarista para garantir o direito à saúde… foi uma Constituição que sofreu influência de muitas pessoas.

Como o senhor analisa os direitos que a Constituição busca garantir?

VAS: Podemos dizer que a Constituição quer mais do que consegue entregar. Há uma parte que estabelece um programa de longo ou longuíssimo prazo, como erradicar a pobreza, diminuir as desigualdades regionais e sociais, assim por diante. Não são coisas que se constrói do dia para a noite. A Constituição tem mais de trinta anos e ainda há muito a ser feito, mas não podemos perder uma visão comparativa de longo prazo. O Brasil de hoje e o de 1988 são muito diferentes. Por mais que tenhamos problemas, muitas das promessas da Constituição foram em parte cumpridas. Se pensarmos nos ganhos de educação de 1988 para cá… Sabemos que ainda há uma série de problemas e muito a melhorar na educação pública, mas não tem comparação a quantidade de pessoas que hoje frequentam escolas com os números de 1988. No caso da saúde, a diferença é ainda mais gritante. Até 1988, ou você era trabalhador e pagava o hospital por conta, ou era trabalhador formalmente registrado e contribuía para a Previdência e Assistência Social, com direito a um serviço de saúde. Todo o restante dependia da caridade de entidades, em muitos casos religiosas, como a Santa Casa. A construção de um Serviço Único de Saúde (SUS) vem da Constituição de 1988, e não existe outro país no mundo com mais de cem milhões de habitantes que tenha um serviço de saúde de graça para todo mundo. Claro que em várias situações há problemas, mas esse acesso universal foi uma revolução. A Constituição propõe muita coisa, e há muito a ser feito ou melhorado, mas houve um avanço inegável. E nunca tivemos um período de democracia tão longo como o atual. Passamos por vários momentos de dificuldade, mas a democracia no Brasil tem resistido apesar das tentativas de desestabilizá-la.

Quanto às emendas constitucionais, o senhor acredita que há necessidade de atualização em alguns pontos ou elas obedecem a interesses de grupos específicos?

VAS: Toda constituição tem a pretensão de ser para sempre, de ser um pacto que define as regras de convivência. Só que o mundo muda, e isso vale para qualquer constituição do mundo, por isso é preciso atualizar um pouco esse pacto. A Constituição brasileira, por várias razões históricas e contextuais, é detalhada e abrangente. Isso exige correções de rumo, o que é importante para mantê-la viva e atual. Obviamente, há emendas constitucionais que são claramente necessárias e as que são resultado de uma maioria conjuntural momentânea, que consegue alterar o texto constitucional para colocar em prática determinada política de governo incompatível com a Constituição. Desde 1988, houve mais de cem emendas… Todas foram necessárias? Certamente não. Existem emendas mais polêmicas, como a que permitiu a reeleição do presidente da República e é alvo de críticas até hoje, ou a que estabeleceu um teto de gastos que pode dificultar investimentos em saúde e educação, por exemplo. Mas, no geral, eu diria que o processo de emendamento da Constituição brasileira seguiu um padrão não muito desviante de outras constituições.

Quando há indicação de ministros ao STF, muito se ouve sobre perfil dos juízes. Há um perfil ideal para os indicados?

VAS: É comum apontarem para um perfil garantista ou um perfil punitivista, mas isso é algo simplificado e próprio do direito penal, quando está em jogo somente o julgamento de crimes. O STF tem atuação como última instância em casos penais específicos, mas, de longe, não é sua atuação principal. Outras contraposições comuns são entre juiz técnico e juiz político, ou ainda entre ativistas e contidos. Todas essas contraposições são muito simplificadoras, é um debate raso. O ministro do STF tem a tarefa de ser guardião da Constituição, garantir os direitos e as regras do texto constitucional e ter uma ação colegiada. O ministro deve se ver como parte de uma instituição maior, que é o STF, e não tomar uma ação individualizada para avançar em uma agenda própria. Esses tribunais e seus integrantes têm de ser vistos desta forma: pessoas com notável saber jurídico, que defendem a Constituição e que decidem de forma colegiada, e não por preferências pessoais.

Houve questões polêmicas nos últimos anos em relação ao entendimento de grupos políticos e de parte da população sobre a Constituição, por exemplo, sobre a suposta tutela de militares aos demais poderes. Por que há esse tipo de interpretação?

VAS: Quem interpreta a Constituição desse jeito não entendeu absolutamente nada. O artigo 142, que é o principal sobre as Forças Armadas, define como sua tarefa fundamental a defesa da pátria e ponto final, como em qualquer país. Estabelece também que elas devem garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem; neste último caso, a defesa é somente quando as polícias falharem nessa função de forma muito excepcional. Quando a Constituição aponta que é tarefa das Forças Armadas a garantia dos poderes constitucionais, há quem acredite que isso significa a intervenção quando houver atrito entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Há juristas que pensam assim e pessoas que vão para a rua nessa defesa. Mas o nome disso é bem conhecido: se chama golpe. A história republicana no Brasil começa com um golpe militar, que foi a Proclamação da República. Desde então, volta e meia as Forças Armadas aparecem para derrubar o presidente da República e, às vezes, fechar o Congresso e ficar décadas no poder. Juristas que defendem essa posição dizem, por exemplo, que, se o Judiciário declara a inconstitucionalidade de uma lei que não era inconstitucional, as Forças Armadas têm o papel de fazer algo. Não, as Forças Armadas não têm papel algum, não estão acima dos três poderes. Pelo contrário, em qualquer país do mundo, elas estão submetidas ao poder civil. Não é tarefa das Forças Armadas analisar se o Executivo está satisfeito com determinada decisão do Judiciário. Agora, se alguém quiser dissolver o Congresso, ou fechar o Judiciário, as Forças Armadas têm o dever de defender tais instâncias, e não o contrário. Se o presidente quiser dar um golpe, as Forças Armadas têm a obrigação de impedi-lo. O problema é que, muitas vezes, no Brasil, as próprias Forças Armadas se atribuíram esse papel. Do ponto de vista fático, quem tem arma tem poder, mas isso não significa que ele seja o correto. Trata-se de um uso político das Forças Armadas, pois temos um histórico de sua intromissão no processo político.

O senhor diz que seu objetivo era fazer um livro que permitisse tanto fomentar a construção crítica de soluções quanto auxiliar estudantes em exames ou concursos. Por que faz essa distinção e, nesse sentido, o que diferencia sua obra de outras com o mesmo tema?

VAS: Existem livros que têm como função dar muita informação para as pessoas para que possam ser mais facilmente aprovadas em concursos públicos. Esses livros acumulam informações sobre questões já perguntadas em provas anteriores. Há livros que não se preocupam com provas, mas somente com questões mais teóricas. Entendo que essa distinção não seja necessária. Ter acesso a tudo o que já foi perguntado em concursos dá uma falsa segurança, porque a pessoa deixa de saber o que é importante na hora de estudar e tenta decorar tudo aquilo, o que não é possível. A minha ideia foi fazer um livro básico, com questões fundamentais para um estudante que nunca teve contato com o direito constitucional antes, e também problematizar coisas que são repetidas ao longo das últimas décadas e nem sempre fazem sentido. Assim, as pessoas acabam aprendendo a refletir por conta própria. Existe uma lógica nesse aprendizado. Claro que o objetivo também é dar respostas aos leitores, mas levando-os a entender que essas respostas dependem de uma reflexão. Em segundo lugar, o livro é organizado de forma diferente. São quatro partes. A primeira é sobre o que é uma constituição; a segunda é sobre direitos; a terceira, sobre poderes – creio que isso organiza a reflexão das pessoas. Na quarta parte, em vez de uma conclusão, proponho um desafio mais reflexivo de se pensar o futuro do direito constitucional e da Constituição nos dias atuais, em torno de temas como corrupção, questões ambientais, antidemocracia, defesa de tecnologias que por vezes causam erosão em nossos direitos. Essa organização ajuda a nossa compreensão. A Constituição não é um livro didático. Há coisas que estão separadas no texto constitucional, mas que devem ser estudadas juntas. Propriedade privada, por exemplo, aparece no início do texto e sistema tributário, no fim – só que um tem tudo a ver com o outro. Muitos livros de direito constitucional tratam apenas da Constituição, e não da legislação, mas a Constituição, no geral, somente passa a ter efeito quando a lei a disciplina e a regula. Por fim, trato de dados sobre o Brasil! Falo isso porque muitos livros trazem um texto que poderia ser aplicado a qualquer país, ignorando as diferenças. No Brasil, se discutimos o direito à vida, precisamos ter em mente que se trata de um país violento. Se pensamos em educação, devemos saber que o país é desigual.

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