Caminho para Brasil crescer começa por inclusão e meio ambiente, diz Ricupero

Coordenador do lançamento “Balanço e Desafios no Bicentenário da Independência” vê economia voltada à preservação ambiental e maior participação de populações periféricas como razões para crer no país

Em Edusp

Por Divulgação

O caminho para o Brasil começar a evoluir como nação e como democracia, com desenvolvimento econômico, passa necessariamente pelo investimento em empreendimentos ambientalmente responsáveis e pela inclusão de populações mantidas à parte na busca por soluções para o país. A opinião é do diplomata Rubens Ricupero, responsável pela coordenação do livro “Balanço e Desafios no Bicentenário da Independência”. O lançamento da Edusp analisa o passado para mostrar o que deixou de ser realizado nas propostas colocadas à mesa na gênese nacional e apresenta desafios e possibilidades para os próximos cem anos.
A obra é o nono volume da coleção Cátedra José Bonifácio, criada para recolher, produzir e disseminar conhecimento, em diferentes áreas, sobre a Ibero-América. Como Bonifácio é o Patriarca da Independência, a escolha do tema da edição deste ano não poderia ser diferente.
Para Ricupero, muito do que foi proposto por Bonifácio, como a necessidade de reforma agrária, continua atual, porém não foi cumprido por pressão daqueles que controlavam e controlam a economia e a política brasileiras. Mesmo assim, ele acredita que o acesso ao debate público por populações mantidas à margem, como mulheres, pretos e pardos, indígenas e moradores de periferias, assim como sua mobilização, dará diversidade e maior qualidade à tomada de decisões. Isso sem esquecer que o Brasil é um país rico em reservas ambientais, e é o respeito a essa riqueza que deve gerar desenvolvimento, em um mundo cada vez mais preocupado com questões como a redução da emissão de carbono.
Ricupero é o primeiro catedrático com formação universitária na USP e o segundo brasileiro. Diplomata, serviu ao país por mais de quatro décadas como embaixador, representante do Brasil na Organização das Nações Unidas, ministro, além de atuar na implantação do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal.
De que modo o livro pode contribuir para o país?
Rubens Ricupero: A cátedra tem um tema diferente por ano e escolhi o bicentenário por razões evidentes. O patrono da cátedra, José Bonifácio, também é o Patrono da Independência e 2022 é o ano do bicentenário. A visão que propus não era a histórica, porque quase todas as iniciativas que houve no bicentenário no Brasil foram de celebração histórica. A abordagem foi radicalmente diferente, voltada ao futuro, porque tem de se partir de duas perguntas: uma é o que se fez em duzentos anos e a outra, o que faltou fazer, foi feito errado ou precisa ser corrigido. Nosso trabalho se preocupou mais com os próximos cem anos, e não com os duzentos que já se passaram, porque não podemos mudar o passado. Claro que não se pode fazer o balanço de tudo, ou teríamos de fazer uma enciclopédia, então sugeri que nos concentrássemos em temas que fossem amplos e tivessem ligação uns com os outros, para dar uma visão do que é fundamental.
Por que e como escolheu os temas?
RR: Escolhemos cinco: desigualdade, democracia, desenvolvimento, meio ambiente e cultura. Desigualdade porque, na maior parte das pesquisas de opinião feitas no Brasil, a maioria responde que essa é a pior herança do passado. Em geral, quando falamos de desigualdade estamos pensando na econômico-social, mas a desigualdade é também de gênero, de raça, de pessoas com deficiências físicas ou intelectuais. Há uma frase do historiador José Murilo de Carvalho, no livro “Cidadania no Brasil: O Longo Caminho”, que termina com uma citação da petição que José Bonifácio enviou à Assembleia Constituinte em 1823, dizendo que a escravidão era um câncer que corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. Murilo diz que a desigualdade é a escravidão de hoje, que impede a criação de uma democracia efetiva. Então o primeiro tema, a desigualdade, é ligado ao segundo, a democracia, algo amplo. Queremos falar com isso do sistema de governo, do Congresso, da Justiça, do sistema eleitoral, de tudo que tem a ver com a escolha das pessoas que vão dirigir país, estados e municípios. Nesse particular, a ligação com a desigualdade é muito grande, porque notamos que o sistema político está nas mãos daqueles que concentram a maior parte da renda e da riqueza. E uma das causas da desigualdade no Brasil é que aqueles que têm cargos políticos e a Justiça se apoderam de uma fatia maior. São os maiores salários do funcionalismo público, as maiores aposentadorias e também são eles que bloqueiam as tentativas de corrigir a desigualdade, o que pode ser feito de duas maneiras. Uma é pela inclusão daqueles que estavam excluídos, e um bom exemplo é a Constituição de 1988. No antigo modelo de Getúlio Vargas só havia direito a tratamento de saúde ou aposentadoria a quem tinha carteira de trabalho assinada. Hoje em dia o SUS dá tratamento de saúde a todos e a aposentadoria foi estendida aos trabalhadores rurais, que nunca contribuíram. Assim se inclui o excluído, mas isso não basta porque a grande característica da desigualdade brasileira é a concentração no topo. Há uma tese do sociólogo Pedro H. G. Ferreira de Souza, no livro “Uma História da Desigualdade: A Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil – 1926-2013”, segundo a qual o 1% mais rico controla 25% da renda no Brasil. É uma parcela muito grande. No norte da Europa, esse 1% controla de 5% a 7%; na França e no Japão, o número vai de 9% a 10%. Então, a maneira de combater isso é, sobretudo, pela mudança na legislação tributária, porque os ricos são os que menos pagam impostos, ou nem pagam, já que os dividendos são isentos de impostos no Brasil. Tem de eliminar a isenção e incluir uma escala mais progressiva de imposto de renda que obrigue quem ganha mais a pagar mais. Por que isso não prospera? Porque depende de o Poder Executivo propor e o Congresso aprovar, mas há muita resistência. O terceiro tema é o desenvolvimento econômico, porque é claro que um país que fica estagnado, como estamos há muito tempo, tem muito menos recursos para distribuir. O quarto tema é o meio ambiente, que não apenas é aquele em que o Brasil piorou mais, mas também é aquele que teoricamente pode servir de vantagem no futuro, na economia de carbono zero. Porque quase tudo que causa emissão de gases no Brasil vem do desmatamento ilegal. Basta proibir esse desmatamento ilegal, como se fez na época da Marina Silva, para que o Brasil passe a ter direito a créditos de carbono e a ter uma economia mais competitiva. O último tema é a cultura, porque nos baseamos muito no precedente da Semana de Arte Moderna de 1922. A cultura não só no sentido da arte, da literatura, da filosofia, mas como maneira de encarar a arte popular e o próprio povo, valorizar as raízes. A Semana de 1922 fez tudo isso e estamos precisando disso de novo. Ao mesmo tempo, precisamos melhorar a qualidade da educação, da ciência e da inovação, tudo no campo da cultura.
Quais textos e análises poderia destacar no livro e do que tratam?
RR: O livro começa com um artigo meu, mais amplo, com o tema de comemorações em geral. Tem um texto do José Guilherme Merquior, que foi a última conferência que fez em Paris, dias antes de morrer. Ele fez em francês e não tinha texto escrito, então foi reconstruído depois e é a primeira vez que sai em português. Em vez de fazer uma história de duzentos anos do Brasil, ele fez uma história dos sonhos que os brasileiros sonharam para o Brasil, dos projetos de Brasil, a começar pelo projeto do José Bonifácio, que queria um país sem escravidão, com reforma agrária, financiamento do Banco do Brasil, incorporação dos negros e dos indígenas, tudo que foi posto de lado. Esse texto dele é desconhecido aqui, embora seja de 1990, mas preserva toda a atualidade. Depois, tem um texto da professora Miriam Dolhnikoff, da USP, sobre os projetos do José Bonifácio, porque ele tinha projeto para tudo, inclusive contra o desmatamento, já naquela época. Tem ainda um texto do Sérgio Abranches, que chama “A Terceira Margem do Ipiranga”, sobre o que o Brasil não fez na democracia. Tem um sobre os desafios que o Brasil vai enfrentar na política externa, do Gelson Fonseca Jr. E os outros textos são ou dos professores adjuntos, ou dos pesquisadores. Tivemos mais de sessenta inscritos no edital, houve uma seleção e no fim ficaram dez, que estão no livro. É uma obra coletiva, uma reflexão sobre o bicentenário da Independência do Brasil, olhando para o futuro.
Quanto se executou do projeto de país nesses duzentos anos, conforme os projetos pensados ainda na época da Independência?
RR: Quando fazemos um balanço do que se fez, o que chama a atenção é aquilo que não se fez. A abolição da escravidão demorou 65 anos. Depois, o que se fez em relação à desigualdade é pouco e ocorreu sobretudo depois da Constituição de 1988. A mesma coisa vale para a reforma agrária. Todos esses grandes temas, que já estavam presentes no espírito de José Bonifácio, continuam presentes. Quando se lê José Bonifácio, o que surpreende é que muitos dos projetos foram postos de lado. Bonifácio governou só dezoito meses, ainda na fase de luta contra os portugueses, quando não dava para fazer grande coisa. Logo depois ele foi deixado de lado e exilado, e quem tomou o controle do país até o fim da monarquia foram os setores ligados aos proprietários de grandes extensões de terra e de escravizados. Eles não tinham interesse nas ideias de Bonifácio, porque o primeiro ponto que ele deixava claro era a necessidade de abolição da escravatura. Joaquim Nabuco, no livro “O Abolicionismo“, que saiu em 1883, diz que José Bonifácio foi afastado por isso. Era o governante que tinha posições contrárias ao interesse dessas pessoas. Esse problema, ainda que de forma modificada, continua hoje. Qual é o grande obstáculo para ter um apoio maior à agricultura familiar, à pequena agricultura, à reforma agrária? É o peso que têm os interesses ruralistas no Congresso, porque eles dominam, e, hoje em dia, com mais clareza. Essa luta não terminou e os próximos cem anos serão marcados por isso. Enquanto o Brasil não conseguir um avanço razoável na questão da desigualdade, todo esse passivo vai continuar a pesar e vai ter consequências como a instabilidade da vida política, a violência da criminalidade, os problemas das cidades. Por isso esses cinco temas são fundamentais, e veremos, a partir desta eleição, todos reaparecerem.
No livro, muito se fala em olhar o passado para planejar o futuro, mas também se menciona como o presente do país é atribulado. Qual a importância da discussão desses temas no contexto atual?
RR: Estamos em um momento muito negativo da evolução brasileira. Escrevi um artigo em inglês, para a Universidade Yale, que intitulei “Não é um Aniversário Feliz para o Brasil“, porque cai em um ano muito negativo. Se o bicentenário da Independência do Brasil tivesse sido em 2010, quando a revista “The Economist“ publicou aquela capa com o Cristo do Corcovado decolando, quando o Brasil crescia 7,6%, com inflação baixa, redução da pobreza, da fome, da desigualdade, havia um sentimento de euforia, com a escolha do país para sediar a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Quando olhamos para essa época, podemos nos perguntar se foi uma ilusão. Não, naquele momento era verdade, mas depois houve desafios que não soubemos enfrentar de forma correta. As manifestações de 2013 eram meio confusas, mas exprimiam uma insatisfação com o sistema. Em vez de mudar o sistema, aquilo foi varrido para debaixo do tapete e no ano seguinte teve eleição, a Dilma foi reeleita, houve recessão em 2015 e 2016, desemprego, e começou também a Operação Lava Jato, que destruiu a confiança nas instituições. É uma série de calamidades que aconteceram e que foram decisões. Não é fatalidade. O que quero mostrar é que, hoje em dia, há muito risco de as pessoas dizerem que o país não vai dar certo, que é pelo nosso DNA, pela colonização portuguesa, pela escravidão, porque somos patrimonialistas, porque queremos explorar o Estado… Todas essas explicações têm um fundo de verdade, algo apenas parcial, e são convenientes porque, de alguma forma, absolvem a todos de responsabilidades. Se em 2010 era melhor, pode ser que em 2030 volte a ser melhor. É ruim em 2022 porque fizemos muita coisa errada. Depende dos seres humanos, pois nada é definitivo, nem o bem, nem o mal. Se olharmos para os Estados Unidos, que são muito mais ricos, têm universidades maravilhosas e tudo mais, eles elegeram Donald Trump e pode ser que elejam de novo. Na Suécia, um partido de extrema direita que nasceu do neonazismo ganhou a eleição, e há vinte anos a Suécia era modelo de harmonia social. Nada está garantido na vida do ser humano, é assim para os países. Há a esperança de que poderemos melhorar no futuro.
Quais são os caminhos para vencer os obstáculos que impedem a execução de um projeto de Brasil realmente independente?
RR: São vários caminhos, mas há duas razões básicas para acreditar que o futuro do Brasil pode ser melhor e que depende de nós: uma é o meio ambiente e a outra é a inclusão. O meio ambiente é hoje o nosso grande passivo, mas ao mesmo tempo é o trunfo que o Brasil tem. Temos a maior floresta tropical do mundo, a maior reserva de água doce, uma das maiores de biodiversidade, uma variedade grande de fontes de energia limpa para além da hidreletricidade, como a eólica, a solar, a possibilidade do hidrogênio e da biomassa… O Brasil tem um campo muito grande para desenvolver o Plano ABC da Embrapa (Plano de Agricultura de Baixo Carbono), que, com reflorestamento, permite ganhar créditos de carbono do restante do mundo, atrair investimentos e criar empregos. Nas condições atuais não temos como competir com a China, com os asiáticos, em cadeias de produção, mas temos no meio ambiente essas vantagens todas e é algo não para o futuro, mas para hoje. A segunda coisa é a inclusão como uma das formas de combater a desigualdade. Pouco antes do ano 2000, na França, discutia com amigos razões para acreditar que o novo milênio seria melhor do que o anterior. Um deles, Michel Camdessus, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional, disse que a maior razão era a emancipação da mulher. Culturalmente, por milênios se tratou a mulher como alguém que não poderia participar da vida com espírito, inteligência, cultura e criação. Ele disse que era como se os seres humanos tivessem passado 50 mil anos usando somente uma metade do cérebro e, de repente, começassem a usar as duas metades. Essa é uma imagem muito poderosa, que se pode aplicar aos negros, às pessoas que vivem nas periferias, aos indígenas, a toda essa multidão que sempre esteve fora do debate. Há muita gente brilhante, mas que nasceu em locais muito pobres, com pouco acesso à escola. Veja as cotas nas universidades. O jornal “Valor“ publicou um artigo com o balanço das cotas e mostrou que, antes de 2000, o número de pretos e pardos nas universidades públicas brasileiras era menor do que 5% e, em 2018, passou a ser mais do que a metade, 50,3%. É notável e não creio que um Brasil com toda essa gente participando será pior do que o atual.
Como enxerga a importância das editoras universitárias, em especial a Edusp, dentro desse debate de país?
RR: O papel das editoras universitárias é fundamental e insubstituível no Brasil, porque publicam textos que uma editora comercial não publicaria. Grandes clássicos da literatura, da ciência política, da sociologia, da economia, quase todos vêm das editoras universitárias. No caso da Edusp, a editora se manteve e com grande mérito, porque depende somente dos recursos da venda dos próprios livros. A contribuição da universidade à Edusp é em infraestrutura e funcionários, que são da USP. O fato de ter mantido e aumentado o número de edições mostra que preenche essa finalidade. Os carros-chefes da Edusp, como “História do Brasil“, do Boris Fausto, que há muito tempo tem formado gerações de estudantes brasileiros, são livros que são sempre atualizados e contam com uma qualidade muito grande, tanto do texto como do design das capas. É um trabalho grande inclusive do ponto de vista social, de redução da desigualdade, porque os livros da Edusp são mais acessíveis a estudantes da universidade por meio de uma bolsa de livros.

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